A Outra América

Utilizo para este texto o título de um livro publicado em 1962 por Michael Harrington, professor de Ciência Política e fundador dos “Democratic Socialists of America”. A outra América para a qual Harrington alertou era um país onde cerca de um quarto da população vivia em condições de pobreza. O seu livro acabou por se tornar uma pedrada no charco, alertando as élites políticas norte-americanas do início da década de 1960 para uma América porventura desconhecida. Ontem uma “outra América” voltou a ocupar o palco central da vida política norte-americana. Certamente uma América muito diferente daquela que nós, europeus, gostamos de imaginar. Muito diferente também daquela que os principais órgãos de comunicação social americanos e europeus desejaram que saísse do acto eleitoral de 8 de novembro de 2016.

A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016 constituiu uma surpresa prevista por poucos nas semanas e nos meses que antecederam o acto eleitoral. A generalidade das sondagens e dos estudos de opinião projectaram sempre a vitória de Hillary Clinton, quer em termos de voto popular, quer em termos do colégio eleitoral onde, como se sabe, o número mágico que garante a vitória é 270.

No entanto, alguns dos factores que nos permitem avançar com uma primeira tentativa de explicação dos resultados eleitorais não são propriamente uma novidade da história política e social norte-americana, tendo emergindo de forma regular noutros momentos da história da nação americana. São, por assim dizer, tendências históricas de longo prazo, que nos apontam para uma América de Trump que sempre existiu, conforme tivemos oportunidade de escrever num outro texto publicado há alguns meses no Diário de Notícias. Entre essas tendências identificamos, de forma clara, o modo como periodicamente a tradição populista surge na sociedade e na política norte-americana, como se de uma ressurgência do espírito do Presidente Andrew Jackson se tratasse. Trump, nas palavras de Michael Lind representa o “populista perfeito”, interpretando um sentimento de revolta popular contra o chamado “establishment”.

O candidato republicano foi igualmente o legítimo intérprete da longa tradição anti-federalista do pensamento político norte-americano, que tende a ver no governo federal, em Washington, um inimigo das verdadeiras liberdades dos estados e dos cidadãos norte-americanos. A isto se junta também uma longa tradição anti-intelectualista, segundo a qual as élites políticas norte-americanas, educadas nas universidades de renome, não seriam verdadeiros representantes do sentimento popular, relativamente ao qual se comportavam, alegadamente, com sobranceria e superioridade. Por fim, também o nativismo e a ideia de que os problemas internos da sociedade norte-americana são provenientes de elementos vindos do exterior foram traços muitos presentes em diversos momentos da história dos Estados Unidos e no discurso político de diversos actores.

Acresce que, no momento particular em que se desenrolaram as eleições de 2016, estes temas encontraram um terreno fértil que os fez ganhar uma nova dimensão e uma expressão eleitoral inimaginável. Na verdade, o populismo e o discurso crítico relativamente aos políticos e ao governo federal tem tendência a aumentar na vida política norte-americana na sequência de períodos de crise económica e subsequentes alterações sociais, como foi aquele que os Estados Unidos experimentaram desde o final da década passada. As alterações do tecido produtivo norte-americano, a importância crescente da tecnologia e as consequências inerentes ao processo de globalização, levaram ao empobrecimento de um sector muito significativo da classe média norte-americana, esse “centro vital” que, segundo um artigo recente do Financial Times, representa agora, pela primeira vez em mais de 40 anos, menos de metade da população americana. Como escreveu a revista The Atlantic, é essa população predominantemente “male, white, and poor” que se sente marginalizada pelo sistema político americano e que tende a culpar Washington e o governo federal das causas dos seus problemas. Não explicando tudo, este foi, sem sombra de dúvida, um dos sectores fundamentais para a vitória de Donald Trump nas eleições de ontem.

A maioria da socedade americana, por conseguinte, estava preparada para receber a mensagem que Donald Trump se esforçou por passar ao longo da campanha eleitoral. Uma mensagem que por vezes parecia incompreensível aos ouvidos dos europeus e até de muitos americanos, sobretudo nos centros urbanos de ambas as costas, mas que foi, sabemos agora, tremendamente eficaz junto dos seus potenciais eleitores. A tudo isto acresce a personalidade de Donald Trump: um “outsider” sem qualquer experiência política anterior (o que só o favoreceu aos olhos do seu eleitorado) e sobretudo uma personalidade que conseguiu, pelas boas ou más razões, captar a atenção dos media e dominar a agenda e os ritmos do calendário eleitoral.

Texto publicado originalmente no site do Diário de Notícias

Photo by By Ali Shaker/VOA

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Luís Nuno Rodrigues

Director and researcher at CEI-IUL. Associate Professor at ISCTE-IUL. Editor of the Portuguese Journal of Social Science. Ph.D in American History (University of Wisconsin). Visiting professor at Brown University.

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