A tempestade perfeita? O resultado das urnas e o recente passado da política italiana

Os resultados das eleições legislativas italianas de 4 de março de 2018 confirmaram a prevista complexidade para a formação do futuro governo e a centralidade do Movimento 5 Stelle (M5S) e do centro-direita, ou partes dele, neste processo. A relevância do centro-direita é ainda mais assinalável pela longevidade da colaboração entre os seus componentes: Forza Italia (FI), Lega Nord (LN) e Fratelli d’Italia (FdI, antiga Alleanza Nazionale) constituem os pilares da coligação há um quarto de século. À luz destes 25 anos de percurso comum, é possível traçar um balanço do modus operandi político destes actores que ajude a avaliar a sua próxima participação no governo da Nação.

Começamos já por dizer que as perspectivas não são animadoras.

Apesar do estado de graça eleitoral do centro-direita, já previsto pelas sondagens, esta área política sofre de uma crise profunda em vários aspectos. Até à véspera das eleições, o indicador mais evidente desta crise tinha sido apontado no regresso do octogenário Silvio Berlusconi na linha da frente da coligação. A relevância deste regresso é hoje amplamente diminuída pela ultrapassagem do Forza Italia por parte da Lega Nord, o que traz este último partido e o seu líder Matteo Salvini ao centro da coligação. E, contudo, os sinais de crise permanecem válidos.

Quando, em janeiro de 1994, Berlusconi anunciou a sua entrada em campo, a direita estava desertificada: a área conservadora e liberal tinha perdido as suas referências partíticas no vendaval judiciário de Mãos Limpas. Apenas a área neofascista permanecia em pé com o Movimento Sociale Italiano (MSI), mas com claras limitações de captação do amplo eleitorado moderado em debandada. Por outro lado, a Lega Nord representava uma força em ascensão, mas restringida à Itália setentrional e com colocação incerta no eixo esquerda-direita. Neste panorama, a chegada de Silvio Berlusconi representou um factor de forte renovação: a tomada do espaço político pelas forças da sociedade civil (na verdade a carreira empresarial do Cavaliere tinha sido construída amplamente à sombra do Partido Socialista), a ruptura dos tabus da Primeira República, com a legitimação dos neofascistas (o apoio de Berlusconi à candidatura de Gianfranco Fini, leader do MSI, às autárquicas de Roma em 1993), a sua função de ponte entre o nacionalismo neofascista (o MSI) e o localismo independentista (a Lega Nord) para uma alternativa vitoriosa contra a esquerda hegemónica.

Assim, no princípio da década de 90, o centro-direita representou um modelo inovador, para a Itália e para a Europa.

Para usar um conceito politológico em voga, tratou-se da tempestade perfeita para a confluência de três populismos: o tele-populismo cesarista de Berlusconi, o populismo pós-fascista da Alleanza Nazionale (ex-MSI) e o populismo independentista da Lega Nord. A tempestade perfeita que, no dizer dos seus protagonistas, teria mudado a Itália através de uma revolução liberal, com uma forte vertente social e de reformismo institucional (o federalismo). A tempestade perfeita que, curiosamente, parece reproduzir-se hoje com a possível confluência entre o populismo de protesto do M5S e o populismo etno-nacionalista da Lega Nord. A análise retrospectiva de alguns pontos da primeira tempestade perfeita resulta, assim, relevante para avaliar o “alcance histórico” do resultado eleitoral hodierno, já proclamado pelos vencedores.

Nas duas décadas e meia que se seguiram a 1994, o centro-direita protagonizou quatro governos liderados por Berlusconi (Maio de 1994 – Janeiro de 1995; Junho 2001 – Abril de 2005; Abril de 2005 – Maio de 2006; Maio de 2008 – Novembro de 2011). A estes podem-se juntar o apoio ao governo técnico de Mario Monti (Novembro de 2011 – Abril de 2013), apesar da oposição da LN e ao governo de compromisso de Enrico Letta (Abril de 2013 – Fevereiro de 2014), apesar da oposição da LN e FdI.

Estes dez anos de governação contribuíram substancialmente para a situação actual de Itália, cujos indicadores económicos, sociais, de satisfação com a democracia, de posicionamento nos rankings internacionais não abonam propriamente a favor da declamada revolução liberal-social-federalista. O centro-direita justificou sempre esta performance com a conjuntura económica internacional, com as contingências impostas pela União Europeia, com a perseguição judicial sofrida pelo líder da coligação, com a mais longeva governação do centro-esquerda.

Os factores externos tiveram uma relevância indiscutível. Contudo, o longo historial político do centro-direita não é propriamente um trunfo para a sua classe dirigente e dificilmente teria produzido resultados diferentes mesmo com os factores externos favoráveis.

O centro-direita demonstrou graves limitações em dimensões importantes.

Surgido como inimigo das lógicas partitocráticas, o centro-direita, em particular o Popolo delle Libertà (PDL, criado em 2009 pela fusão entre FI e AN), foi palco de conflitos contínuos entre as facções internas aos dois partidos de origem e, principalmente, entre os dois líderes Silvio Berlusconi e Gianfranco Fini. Uma disputa letal para a qualidade da governação e, ainda por cima, não promovida à volta de projectos políticos alternativos, mas pela conquista da hegemonia desta área política para o futuro.

Na frente da prometida revolução legalitária não correu melhor. Mesmo pondo de lado os famigerados problemas judiciais de Berlusconi, os outros dois líderes da coligação viram as respectivas carreiras arrasadas por crimes financeiros para favorecer parentes próximos: Umberto Bossi (LN) por utilização indevida de dinheiro público, Gianfranco Fini (AN) por fraude ligada ao património imobiliário do partido. Os escândalos de corrupção interessam também vários quadros intermédios dos três partidos, com responsabilidade nos governos nacionais, regionais e autárquicos.

Na frente da renovação geracional, nos últimos 25 anos, o centro-direita não foi a escola de uma nova elite dirigente nem o polo de atracção das energias da sociedade civil temporaneamente emprestadas à política. O cesarismo centralista de Berlusconi abafou todas as figuras emergentes que podiam ter garantido a passagem de testemunha na liderança desta área política. Os dois líderes actuais de FdI e da LN – Giorgia Meloni e Matteo Salvini – apesar de relativamente jovens, representam carreiras pessoais de longo curso nas estruturas partidárias e não a promoção generalizada da geração under-50. Na Lega Nord, em particular, a liquidação da velha guarda do líder histórico Bossi correspondeu menos à renovação qualitativa da elite dirigente e mais à criação de uma corte de fiéis ao novo líder Salvini. Neste aspecto, e apesar de algumas figuras de renome a nível regional, a LN está a configurar-se como partido personalista à volta de Salvini mais do que o era à volta de Bossi.

No que diz respeito à consolidação organizativa, os três partidos não tiveram melhor êxito.

Com o fim do PDL em 2013, o Forza Italia regressou ao seu status de partido personalista, com o actual declínio eleitoral a coincidir com a senilidade de Berlusconi. Fratelli d’Italia regressou às percentagens do antigo MSI (5%), longe dos resultados de AN (superiores ao 10%) e sem a base militante do antigo partido neofascista. Muita da classe dirigente que liderou a transformação do MSI em AN em 1994 dispersou-se em micropartidos “cisionistas” ou migrou para Forza Italia e até para a Lega Nord. A Lega Nord, por sua vez, encetou uma estratégia nacional, ideada por Salvini para resgatar o partido do reduto nórdico, sem contudo conseguir mobilizar forças novas na Itália meridional, mas sim cooptando veteranos da política vindos dos outros partidos de centro-direita.

Finalmente, na frente programática, os intelectuais do centro-direita denunciam, há anos, a falta de aprofundamento cultural das posições políticas, em temas centrais do debate público, como a bioética, o género, a família, a nacionalidade, a identidade europeia. O descontentamento ferve principalmente na área pós-fascista, cuja herança cultural sempre foi a mais vincada no centro-direita. O sinal mais evidente desta pauperização cultural é a baixa qualidade da campanha eleitoral de 2018, modelada na agenda alarmista da comunicação social e nos consequentes humores da opinião pública. Assim, as alas radicais do centro-direita – Lega Nord e Fratelli d’Italia – produziram um discurso anti-imigração e anti-islâmico esclerótico, não suportado por análises de fundo dos fenómenos e por modelos alternativos de sociedade no contexto internacional.

Analisando apenas a última década do centro-direita, o politólogo Marco Tarchi identificou cinco factores determinantes para a sua crise: o cesarismo de Berlusconi, a fraca institucionalização da coligação, o fraccionismo interno, a permeabilidade à corrupção, a indefinição programática em matérias centrais para o futuro da Itália.

Qualquer que seja a participação do centro-direita, ou partes dele, no próximo governo de Itália, os antecedentes históricos não prometem nada de positivo. Este panorama não fica mais aliviado pela performance de curto período do M5S, cuja indefinição programática, permeabilidade às más práticas políticas, duvidosa capacidade administrativa a nível autárquico, representam já sinais pouco animadores.

Silvio Berlusconi / Photo by Global Panorama / CC BY-SA 2.0

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Riccardo Marchi

Post-doctoral researcher at CEI-IUL. PhD in Modern and Contemporary History (ISCTE-IUL). Research interests: right-wing radicalism (political thought, parties and movements) and the relations between States and radical organizations in contemporary Europe.

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