Brexit: Para Além do Populismo

No dia 29 de Março de 2017, a primeira ministra britânica Theresa May entregou formalmente o pedido de saída do seu país da União Europeia, acionando assim o artigo 50 do tratado de Lisboa. Desta forma, tal como proferiu Theresa May: “este é um momento histórico e irreversível”.

Há bastante tempo que se vem analisando o fenómeno do Brexit como uma vitória do populismo, isto é, do povo contra as elites “globalistas”. Contudo, uma análise mais atenta coloca muitos problemas à solidez desta narrativa.

O anti-europeísmo das elites

O anti-europeísmo é uma verdadeira cultura no Reino Unido e este não é um fenómeno recente. Ademais, esta cultura não é apenas popular mas também de elite. A ideia de que as elites britânicas estavam todas do lado do remain é uma ilusão. Boa parte do partido Tory sempre discursou contra a pertença ao projeto europeu, e mesmo entre os trabalhistas o europeísmo não é sólido.

Talvez a principal razão para percepcionar o Brexit como a vontade de boa parte das elites britânicas é o facto de o referendo ter sido realizado. É verdade que havia a oposição do UKIP que pressionava nesse sentido, mas este último não tinha presença parlamentar e estava ainda longe de conseguir entrar no parlamento devido ao sistema eleitoral first-past-the-post que vigora no RU. Naturalmente, há muitas causas fraturantes que seriam bem recebidas pelas populações mas por vontade política nunca chegam a ser referendadas. Como tal, este referendo foi consequência da vontade de elementos no topo do sistema político.

A tradição anti-europeísta

Para perceber o porquê desta hostilidade das elites britânicas ao projeto europeu é necessário olhar para a história e tradição. Desde há muito que o RU usa ostensivamente a estratégia do divide and rule para não ser integrada e tomada pelas forças da Europa continental. Exemplos claros são o tradicional apoio britânico à independência portuguesa de forma a enfraquecer o poder hispânico, ou a constante rejeição de projetos europeístas como foi o de Napoleão. Uma mentalidade insular e, mais recentemente, um individualismo liberal enraizado fazem com que rejeitem a União da Europa como comunidade de destino. Isto apesar de a União Europeia auto-declarar-se como projeto liberal por excelência. Contudo, os britânicos sentem que tal não é a história completa, e que há de facto um comunitarismo idealista por trás da ideia da Europa Unida.

Apesar de os instintos que votaram a favor do Brexit serem nativistas e de natureza identitária, tal não significa que o caminho que as elites pró-Brexit tinham em mente era o do nacionalismo. Pelo contrário, Theresa May vende o RU pós-Brexit como o caminho para a Global Britain. Isto é, o RU deixa de ser Europeu para ser “globalista”. São as ironias deste processo: votou-se com instintos nativistas para  se culminar com um alargamento das relações globais. Nisto as forças políticas de Theresa May estão em linha com Nigel Farage, que considera que o lugar do RU é na Commonwealth não-europeia e não na Europa.

A dupla narrativa

Dada esta tradição eurocéptica, a presença do RU na União Europeia sempre foi algo misteriosa. Talvez ninguém represente tão bem este mistério como Winston Churchill. Num discurso em Zurique (1946), ele declarou o apoio à ideia dos Estados Unidos da Europa. Contudo, já no parlamento inglês, ele declarou que o RU não pretende ser integrado num modelo federal e que o RU “está com a Europa mas não é da Europa”.

Esta dupla narrativa britânica encontra a sua melhor explicação na sátira do programa Yes Prime Minister, quando o infame Sir Humphrey Appleby explica ao primeiro ministro Jim Hacker que a razão porque o RU entrou na União Europeia é para se certificar que ela não irá funcionar, visto que a política britânica tradicional visa garantir a desunião entre Europeus.

O futuro

Contudo, o Brexit vai impedir que no futuro as culpas dos problemas internos sejam imputadas à União Europeia. Irá assim tornar-se claro que os problemas que motivaram os votos do Brexit (imigração e identidade nacional) não eram, na sua essência, criados pela União Europeia. Para adensar a questão, o Brexit parece ter despertado no governo uma vocação ainda mais global e universalista. Assim, será interessante seguir o rumo de uma nação que, sem império e sem vontade de pertença europeia, poderá cair num vazio insustentável, entregue aos seus próprios conflitos e contradições internas.

UK Prime-Minister Theresa May. Photo by Daniel Leal-Olivas / CC BY 2.0

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Filipe Faria

Research associate at CEI-IUL. PhD in Politics (King’s College London). Research interests: Social and Political Philosophy, Political Economy, Biopolitics.

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