Em Guerra Contra Nós Mesmos

Praticamente desde a segunda metade do século XX que não se assistem a declarações de guerra entre Estados, embora os conflitos e as guerras, como se sabe, tenham ocorrido em variadíssimas regiões do planeta. Há inúmeras formas de explicar este fenómeno, mas optamos pela expressiva lição do General Cabral Couto (COUTO, Abel Cabral, Elementos de Estratégia, Vol. I; IAEM, Lisboa, 1988), uma das mais importantes referências para quem estuda Estratégia, quando classifica os interesses dos Estados em ‘Vitais, Importantes e Secundários’ aduzindo, para cada um deles, o grau de comprometimento de uma Nação: pelos Vitais morre-se, pelos Importantes combate-se e pelos Secundários negoceia-se. Porque, em especial para a esmagadora maioria dos países desenvolvidos, nas últimas sete décadas não estiveram em causa os interesses vitais dos seus países, combateu-se e negociou-se, apenas, sempre que estiveram em causa interesses importantes e secundários, ou seja, não foi necessário recorrer a declarações formais de guerra embora se tenham vivido imensas situações de elevada conflitualidade, e geralmente, fora dos seus próprios territórios.

No futuro, se quisermos considerar os cenários mais graves e pessimistas, não se configuram a breve prazo ameaças suficientemente fortes à maioria dos Estados Democráticos, como na maioria dos Europeus (há exceções, naturalmente, como seria o exemplo da Ucrânia), para que possamos dizer que se coloquem em causa os respetivos interesses vitais. Pelo menos enquanto pensarmos em ameaças vindas de terceiros mas, há um enorme risco que nos poderá colocar, a breve prazo, os nossos interesses vitais em causa: a falta de recursos.

As alterações climáticas, o crescimento populacional e a forma como temos vindo a gastar os recursos do planeta causam, e causarão ainda mais, inevitáveis consequências para todos os seres vivos que nele habitam. Estarão em causa Interesses Vitais, estarão em causa os recursos mais básicos para podermos viver e, de acordo com Cabral Couto, por esses Interesses Vitais temos de nos preparar para morrer por eles. Mas será de uma guerra que falamos?

A sobrevivência do nosso planeta

No último livro de Thomas Friedman, 2016, Thank you for being Late, Penguin Books, EUA, ele recorda o estudo de Rockström e Steffen intitulado “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity” sobre os famosos 9 (nove) limites inultrapassáveis para o planeta sobreviver (pp. 169-171) que sinteticamente são as seguintes: já ultrapassámos 4 limites (estamos a 400 partes por milhão em dióxido de carbono e não deveríamos ter passado os 350; estamos a 84% do nível de biodiversidade da época pré-industrial e não deveríamos baixar dos 90%; estamos a 62% do que tínhamos de florestas originais e não deveríamos ter baixado dos 75% e estamos muito acima dos níveis de uso de bioquímicos – pesticidas e outros – que o planeta permite absorver); estamos quase a passar outros 4 (o nível de acidez dos oceanos; a capacidade de manter o nível de água potável; a poluição causado por aerossóis atmosféricos – causado por fábricas, centrais de energias e combustíveis – e a crescente subida em novos elementos na natureza como os plásticos ou os resíduos nucleares) e apenas conseguimos reverter um dos limites, o do nível do ozono na atmosfera. Em síntese, a situação, o cenário futuro para o planeta e de todos os que nele habitam, afigura-se como preocupante.

Uma declaração de guerra sem retorno?

Quando rios como o Indo que nasce na Índia mas alimenta o Paquistão, ou o Ganges ou Brama Putra, ou o rio Nilo ou os Lagos Chade ou o avanço quase imparável do Sahara em África, que 11 países africanos tentam desesperadamente travar, estão em risco, devem-nos fazer refletir. Se falta água faltam alimentos, se faltarem alimentos as condições ambientais deterioram-se, as populações deslocam-se porque precisam de condições para viver. Poderá acontecer que ninguém decida iniciar uma guerra mas, poderemos ser nós próprios, ao ignorar que estamos a passar limites que deveriam ser inultrapassáveis, que iremos criar uma guerra contra nós mesmos ou, indiretamente, criarmos algumas das condições para acelerar situações de conflitualidade que se podem transformar em guerras efetivas. Os interesse vitais de muitas nações e povos podem vir a estar em causa e por esses temos de fazer tudo, mas mesmo tudo, incluindo o estar pronto a morrer, para os garantir.

Estaremos a declarar guerra a nós próprios porque não agimos, não acreditamos, não queremos saber ou, simplesmente, porque não sentimos ainda, verdadeiramente, da enorme dimensão do problema. Começa aqui a solução. Entender a gravidade e dimensão das ameaças e riscos, saber o já ocorre, o que poderá vir a ocorrer e o que podemos e devemos fazer. Afinal, se tivermos essa consciência, também nos lembramos da outra grande máxima da estratégia, tão antiga como os ensinamentos de Sun Tzu: a melhor forma de vencer uma guerra é quando não a temos de combater.

Temos de pensar a grande política e definir a melhor estratégia para o conseguir. Podemos evitar uma guerra contra nós mesmos. Está, apenas, nas nossas mãos.

National Wildlife Range landscape. Photo by Pacific Southwest Region USFWS / CC BY 2.0

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Nuno Lemos Pires

Researcher at CEI-IUL. Professor at the Portuguese Military Academy (PMA). Ph.D. in History, Defence, and IR (ISCTE-IUL and PMA); M.A. in Military Sciences (PMA). Guest lecturer at ISCTE-IUL, U. Nova, IESM, IDN. Professor of Military History and IR at IAEM and AM; Intelligence Officer at NATO / Rapid Deployable Corps (Spain).

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