Le Pen já ganhou, haja o que houver

Às portas do desfecho das eleições francesas, é tempo de olhar o quadro social em que as mesmas se desenrolam. Inúmeros lugares-comuns são visitados e reciclados em favor da campanha eleitoral, numa França multicultural e profundamente instável. Os problemas de ordem sociológica que afetam a França são conhecidos. Dificuldades de assimilação e acomodação cultural por parte de imigrantes provenientes do mundo árabe, segundas gerações em encruzilhadas identitárias que derivam em crises, que por sua vez se desenrolam em radicalismos. É inquestionável o efeito nefasto que a guetização teve na sociedade francesa. O multiculturalismo e a globalização exigem muito mais esforço concertado do que o enclausuramento fronteiriço, físico e cultural. É muito fácil perante a diversidade cerrar fileiras identitárias, arreigando-se a chavões culturais que formalizam uma espécie de ‘identidade nacional’, que mais não é que um aglomerado de práticas estabelecidas como autênticas e tradicionais. Aquilo que Jean-Louis Triaud, em Lieux de mémoire et passés composés, chamava de «memórias instituídas» e o já clássico Eric Hobsbawm cunhou como «invenção da tradição».

Esse é o pano de fundo sociológico que, misturado a um cenário de precariedade laboral resultante de um capitalismo multisituado e dependente do sistema bancário, produz “descamisados da globalização”, pessoas à deriva, anónimos, sem rosto, sem referenciais, sem ingresso na ordem mundial globalizada, de classes sociais desfavorecidas e altamente instáveis, são adeptos fáceis das teorias do medo e que aderem a discursos que lhes oferecem um culpado estratégico, ainda para mais quando esse culpado estratégico não é passivo. No seu clássico Da Democracia na América, Alexis de Tocqueville bem alertava que as pessoas abrem mão da sua liberdade em troca de segurança, quando os tempos conturbados batem à porta.

Nesta França, como noutras geografias europeias, o «outro» já não é apenas culturalmente diferente, é o que “se apropria do fundo de maneio da segurança social francesa”, “registando mais de cinco filhos, para passar o dia no banco de jardim”, é o que se guetiza — narrativa que se esquiva de fazer a reflexão sobre os efeitos da guetização de imigrantes na construção de uma ideologia de exclusão e reforço de referenciais de contraste –, “que se coloca à margem” e se “recusa a aderir aos padrões franceses”. São um punhado de ideias soltas, ampliadas em redes sociais, em cafés, nas ruas. É um país em debate interno sobre a imigração, o multiculturalismo e as fronteiras identitárias, receosa do terrorismo, conhecedora da narrativa do Daesh de exportação de terroristas a partir do fluxo migratório, gerando fissuras no edifício social francês, onde uma franja eleitoral olha de soslaio para a resposta democrática: a integração e as políticas de inclusão social. Um eleitorado para o qual tais mecanismos de resposta deixam de ser alternativa, em particular porque os seus efeitos são mais demorados, diluídos no tempo, e assim, a alternativa extremista de fechamento de fronteiras e reforço do nacionalismo francês, voltam à tona com nova energia. E a cada dia que passa a “paz kantiana” e os sonhos da União Europeia vão se desmanchando, dando lugar a um cenário em tudo idêntico aos pré-guerras mundiais.

Assim, no cenário atual, em que o radicalismo islâmico coloca a França em sobressalto e a precariedade social e económica é evidente, e diante de uma Esquerda que se perdeu dentro de si, esgotada numa narrativa que não possui justaposição social e adesão popular, Marine Le Pen — espólio ideológico dos derrotados da II Guerra Mundial, os que não se conformaram com a queda do ideal nazi — chega à segunda volta das eleições francesas, deixando o mundo ocidental em alerta vermelho, tornando-se evidente que, haja o que houver, a extrema-direita francesa já venceu, tendo sabido sair da marginalidade e dos limites de reduzidas franjas sociais para entrar pelas portas da sociedade francesa, nos lares tendencialmente moderados, radicalizando os franceses, como Trump radicalizou parte significativa da América, e a poeira da história, os ventos dos anos de 1920 e 1930 estão de volta, reforçando a ideia de vagas fascistas que assolam a Europa (e não só) de tempos a tempos.

Photo by Guilhem VellutCC BY 2.0

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João Ferreira Dias

Researcher at CEI-IUL. PhD in African Studies (ISCTE-IUL) about politics of memory, and cultural loss in the terreiros de Candomblé. Research interests: religious memory, nostalgic sentiments and cultural loss, the orthopraxy and thought patterns in jeje-nagô Candomblé, and the Yorùbá construction and religious and ethnic identity.

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