O Efeito Trump: Esquerda e Direita Contra a Política de Identidade

A eleição de Donald Trump foi um evento inesperado nos círculos liberais americanos. Existia uma confiança enorme em que as transformações demográficas dos últimos 50 anos nos EUA iriam garantir permanentes vitórias ao partido democrata. Focando-se na defesa identitária da crescente demografia não-euro-americana, a esquerda liberal ficou incrédula com a reacção positiva que muitos eleitores tiveram à ascensão de Trump. Mas a esquerda liberal não foi a única a surpreender-se, os próprios conservadores do partido republicano ficaram estupefactos em relação ao sucesso que a narrativa nacionalista de Trump teve entre os euro-americanos de todas as classes sociais (especialmente nas zonas rurais).

O fenómeno Trump obrigou imediatamente a um repensar da estratégia utilizada até agora pela esquerda liberal. O psicólogo social Jonathan Haidt explicou que a política de identidade praticada pela esquerda americana despertou a política de identidade à direita. Isto é, a luta de emancipação das ditas “minorias” nos EUA e os ataques permanentes ao homem Europeu despertaram o sentimento de que a identidade deste último está em perigo e necessita de ser defendida.

Contra a política de identidade

Ganha assim força a narrativa de que a esquerda liberal precisa de abandonar a política de identidade que a caracteriza desde (pelo menos) os anos 60-70. O ex-candidato democrata Bernie Sanders foi peremptório em afirmar que é preciso acabar com a política de identidade para que o partido democrata possa cativar a classe trabalhadora euro-americana. Subjacente está a ideia de que a esquerda precisa de aplicar um liberalismo largamente insensível à identidade dos indivíduos para cativá-los com a oferta de protecção contra as vicissitudes do mercado e da globalização. O filósofo de esquerda Zlatko Žižek concorda que é preciso acabar com o foco na política de identidade para a esquerda voltar a ter o apoio da classe trabalhadora euro-americana. Para Žižek, só assim será possível retirar esse segmento populacional da influência de “direitistas” como Trump.

Contudo, a direita desenvolve igualmente uma narrativa contra a política de identidade. Activistas de direita promovem nacionalismo liberal/civil de forma a acabar com a política de identidade. Nesta narrativa surge com particular destaque a linha Breitbart, que inclui as ideias do falecido Andrew Breitbart e que culminam na personalidade de Milo Yiannoppoulos e em Steve Bannon (conselheiro sénior de Donald Trump). Sem surpresa, Trump abraçou já uma retórica que reflecte precisamente esta linha. Ao contrário do Trump da campanha eleitoral que falava implicitamente para as sensibilidades euro-americanas descontentes, Trump discursa agora como candidato que transcende identidades, unicamente preocupado em fortalecer a identidade americana.

A identidade americana?

Contudo, a ideia de que é possível suprimir a política de identidade está muito longe de ser verificada. A identidade americana que Trump agora verbaliza é uma tentativa de realizar a essência de um projecto liberal onde os indivíduos se despem da sua identidade para abraçarem uma outra. Tal baseia-se na ideia de que os indivíduos devem ser tratados como entidades singulares e retiradas do seu percurso histórico. Há um elemento de verdade na ideia de que as identidades possuem alguma plasticidade, mas não são infinitamente plásticas. E há razões evolutivas para tal. Mesmo tendo passado os últimos 60 anos envolvidos em conflitos com inimigos externos, os EUA não conseguiram a união interna que o processo Schmittiano amigo-inimigo supostamente traria.

O futuro da esquerda liberal

Sem a política de identidade que a caracterizou, a esquerda liberal americana necessita de basear o seu discurso na economia. Contudo, em sociedades em conflito identitário (como é o caso dos EUA), o discurso económico passa a ter menor importância. Por cada liberal de esquerda que oferecer protecção contra a predação do mercado global, existirá um potencial ‘Trump’ que oferece a mesma protecção acoplada à defesa identitária. Este último terá necessariamente vantagem na captação do seu grupo demográfico. O próprio Paul Krugman revelou que não consegue encontrar uma explicação para a classe trabalhadora euro-americana votar contra os seus interesses económicos, e que tal só se explica com o voto identitário.

Entrar no novo paradigma político

Estamos assim na presença de uma nova ordem ideológica onde a esquerda e a direita americanas tentam livrar-se da política de identidade. Contudo, nem uma nem outra vão conseguir libertar-se facilmente das forças identitárias a operar na sociedade americana. Neste processo de polarização, e ao abandonar a política de identidade, a esquerda liberal poderá deixar de ter espaço político. Ademais, com a população euro-americana a decrescer percentualmente, o cortejar das novas maiorias será uma permanente tentação para a esquerda. Já a direita tenderá a dividir-se entre os que assumem a política de identidade euro-americana e os que tentarão enveredar pela abstracção da identidade ‘americana’, mesmo que de forma ambígua.

Com o efeito Trump, estamos a assistir a uma reorganização do paradigma político americano.

Photo: Donald Trump / CC0 1.0

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Filipe Faria

Research associate at CEI-IUL. PhD in Politics (King’s College London). Research interests: Social and Political Philosophy, Political Economy, Biopolitics.

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