A memória impressa

As questões da memória e do tratamento do passado têm sido objeto de debates apaixonantes e têm vindo a tornar-se num dos temas mais em voga nas academias de todo o mundo. O seu papel social é reconhecido não só no que respeita ao que permanece do tempo pretérito, mas também como elemento essencial para a construção das identidades coletivas presentes e futuras.

Assim sendo, as memórias são sempre fruto de construções contemporâneas que escolhem os narradores das suas histórias. Se bem que os documentos oficiais e a história oral sirvam de baliza à construção do discurso da memória, a verdade é que existe muita criatividade nos arquivos, nos documentos e nos testemunhos orais, obrigando o investigador a buscar o contraponto, as ausências de discurso ou a procurar as razões da proeminência de uns elementos face a outros.

A par desta pesquisa é, ainda, preciso atentar noutros documentos, muitas vezes deixados de parte ou tratados à parte. Refiro-me neste caso à imprensa periódica e à literatura que permanecem, apesar da digitalização do conhecimento e da informação, como elementos essenciais do debate moderno e da construção da memória coletiva.

Imprensa Periódica e Literatura

É hoje relativamente consensual reconhecer o papel da imprensa periódica enquanto registo da memória coletiva, quando olhamos para o passado, e como seu construtor quando pensamos no presente. A imprensa periódica regista as informações e os anseios de uma determinada sociedade, mas também os seus preconceitos, os seus esquecimentos e silenciamentos. Tem sido este o seu papel, hoje reconhecido tanto nas abordagens da história da comunicação e do jornalismo como noutras áreas como a história das ideias, a ciência política, as relações internacionais e, claro, a literatura.

A imprensa periódica funciona, então, como um registo da memória coletiva e como diário da comunidade. Registos e diários que podem ser tornados públicos ou que são levados ao público voluntariamente. Aí ficam registados os debates mais fracionantes da sociedade e demovam-se todos os que creem que essa função social da imprensa estava perdida, pois as mais recentes discussões públicas parecem ter regressado à impressa periódica.

E por que razão tal acontece? Talvez porque a imprensa periódica continue a garantir uma maior profundidade no debate e uma maior diversidade de participantes do que outros meios de comunicação seus concorrentes. Também porque continua a deixar liberdade de interpretação ao seu recetor, ou seja, o leitor pode entrar em diálogo com o autor da escrita, sem ser interrompido por um moderador ou por qualquer outro comentador. Essa relação que só o texto escrito assegura não é despicienda e pode mesmo ser tida como uma especificidade deste mundo cada vez mais globalizado e intermediado pela digitalização.

A par da imprensa periódica, outro documento fundamental da construção da memória é a literatura. O texto literário, para além do seu pendor estético, fixando e transmitindo gostos de determinadas épocas que em muitos casos se mantêm ao longo dos tempos, também transmite as ideias culturais dominantes de um determinado tempo, o período de produção da obra. Assim sendo, funciona como documento do seu tempo e voz do seu autor, constituindo uma importante fonte para a construção ou reconstrução da memória de uma determinada época.

A sua subjetividade permite ainda ultrapassar, por vezes, os constrangimentos a que outros tipos de documentos estão sujeitos, como a censura e a autocensura. Ainda recordo que uma das questões colocada no meu exame de aferição para o ensino superior perguntava se o texto literário poderia ser usado como documento histórico e inequivocamente respondi que sim, justificando a minha resposta. Com o correr do tempo, percebi que não funciona só como um documento histórico, constituiu também uma prova da criatividade humana, expressando inúmeras vezes uma ideia de sociedade ou de comunidade política.

Leia o artigo na íntegra no site do Jornal Económico.

As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.

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Cátia Miriam Costa

Researcher at CEI-IUL. PhD in Literature (Univ. Évora). Master in African Studies (ISCSP-UTL). Undergraduate studies in International Relations (ISCSP-UTL). Research interests: intercultural relations, colonial and post-colonial studies, international communicaion, discourse analysis. Work experience: Think tanks and Economic and scientific diplomacy.

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