Quando havia Erasmus, “Brexit” e polémicas violentas

Há quinhentos anos, por estes dias, um jovem monge alemão enviou para o seu bispo um texto composto por uma série de 95 curtas teses de uma ou duas linhas cada, escritas em latim. Pode ser que tenha também pregado o mesmo texto na porta da Igreja de Todos os Santos em Wittemberg, no dia 31 de outubro de 1517, dando assim início à Reforma Protestante.

Umas décadas antes aquele gesto teria passado desapercebido. Mas no tempo de Martinho Lutero — pois esse era o nome do jovem monge — a imprensa tinha já mudado a paisagem do debate de ideias. Passado poucos meses já havia centenas de cópias das 95 teses de Martinho Lutero, mecanicamente reproduzidas, a circular pelo continente. Todas juntas, com o uso de algumas abreviaturas, as 95 teses cabiam num único cartaz, e também nessa versão foram pregadas nas portas de muitas igrejas e coladas nas paredes de universidades ou de estalagens. A história da Europa iria mudar para sempre.

Há poucas gerações de que se possa dizer que viram tanta mudança como aquela que viveu em torno de 1500. A geração de Erasmo de Roterdão, Thomas More, Martinho Lutero e, mais tarde, Damião de Góis. Todos eles se conheceram, trocaram cartas, polemizaram entre si (fazer “o programa Erasmus”, nesta altura, poderia não ter esse nome, mas consistia em ir visitar o próprio Erasmo de Roterdão numa das muitas cidades europeias por onde ele circulava). A polémica das indulgências papais, que tinha motivado as 95 teses de Martinho Lutero, não era desconhecida de nenhum destes autores, que criticavam a ganância com que alguns pregadores vendiam a promessa de salvação eterna com uma frase destas: “assim que uma moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai”. Mas o tema era menor quando comparado com algo que tinha acabado de acontecer: o mundo tinha aumentado de tamanho; havia continentes desconhecidos que tinham acabado de ser descobertos; povos inteiros de que os europeus sabiam pela primeira vez (Montaigne foi a Bordéus ver o desembarque de índios do Brasil). Tornava-se real a possibilidade de que partes da humanidade pudessem viver de forma sã e razoável sem terem conhecimento dos livros sagrados. Foi talvez aí que a Europa começou a perceber que era Europa — um continente com gente dentro — e não só a “cristandade”. Ao mesmo tempo que o mundo cresceu, porém, a cristandade na Europa começou a encontrar formas de se diminuir, dividindo-se em bons e maus cristãos, falsos e verdadeiros crentes. Em poucos anos, as rivalidades iriam tomar conta de cada cidade e cada vila, rua a rua, casa a casa. Um século depois, a Guerra dos Trinta Anos levaria as rivalidades europeias ao paroxismo, e a partir daí todos os inícios de século tivemos uma guerra de todos-contra-todos na Europa.

À exceção do século em que nos encontramos, até agora.

Leia o artigo completo no site do jornal Público.

"Le massacre de la Saint-Barthélemy" de François Dubois, exposta no Musée cantonal des Beaux-Arts (Lausanne) / Domínio público

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Rui Tavares

Researcher at CEI-IUL. PhD in History (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris). Member of the European Parliament and rapporteur for refugee and human rights issues in Hungary (2009-14). Research interests: History; Portuguese cultural and political history; European Union history and theory.

Leave a Reply