São Tomé e Príncipe: recordar os mortos e… que dizer dos vivos?

Há 65 anos, a ira demencial de um governador e a anuência cobarde do seu séquito, insufladas pela cegueira do racismo, originaram o mais trágico evento da história recente do arquipélago. Para além deste episódio, o maior pecado do colonialismo servil do dinheiro dos roceiros terá sido, não a tão verberada “exploração do homem pelo homem”, mas o défice de educação dos ilhéus, uma aposta encetada tardiamente. Por isto, e também devido ao decantado ressentimento contra o colono, após o 25 de Abril ninguém estava em condições de se opor à volição revolucionária que minaria as instituições, ao mesmo tempo que inoculava o medo que pôs termo a fugazes meses de liberdade.

Após a independência, assimilou-se o regime colonial aos desmandos de 1953 e, enquanto durou a exaltação com a independência escorada na esperança de um futuro melhor, ninguém se deu conta, ou pôde falar, do prejuízo causado pela corrosão das instituições e da garantia que, mesmo num colonialismo ditatorial, por vezes elas tinham representado para as pessoas. Aliás, ainda que de forma inconfessada, o acatamento da ordem, o respeito pelas hierarquias e a memória dos procedimentos institucionais do colonialismo – mais tarde associados ao que os são-tomenses relembraram como os “nossos valores” – ainda serviram por algum tempo ao exercício do poder independentista. Em todo o caso, a corrosão das instituições inevitavelmente gerou uma espiral de perda e de atribulações crescentemente gravosas para a maioria dos são-tomenses.

Ao cabo de uma década, o regime de partido único caíra num impasse, sem suscitar uma movimentação social indutora de alterações políticas de monta.

Todavia, a rendição de governantes à necessidade de abertura política e a subsequente adopção da democracia sararam algumas feridas. A democracia pareceu uma redenção e muitos ilhéus terão desejado ver o país reconduzido a uma matriz cultural europeizada que, ao cabo de anos de provações, parecia um porto de abrigo para vidas fragilizadas pelo empobrecimento usurário de corpos e de almas. Não tinha de ser, mas com a competição partidária sobreveio o famigerado banho – a alegada compra de votos ou das consciências –, deplorável pela miséria política e ética dos seus pressupostos. De outra perspectiva, o banho, equivalente à confissão de incapacidade de determinação de um destino colectivo, prenunciou a perniciosa atomização dos indivíduos e confirmou a debilidade da sociedade civil. Ainda mais perturbante, o banho indiciou a propensão das gentes, carentes e alheias a ideologias ou a programas, para a adesão, inevitavelmente rala e dúplice, ao chefe ou ao mais poderoso. Com raríssimas excepções, os políticos são-tomenses alimentaram essa gangrena social.

Num contexto de progressiva deliquescência institucional, os golpes políticos meramente tácticos, como os patéticos derrubes de governo ocorridos na presente década, pautados pela funesta fulanização da política, mantiveram-se dentro dos limites legais. Os subsequentes resultados eleitorais, incluindo a actual maioria absoluta no parlamento, resultaram da avaliação da rua acerca da injustiça de tais lances politicamente contraproducentes para os seus fautores. Todavia, os mais recentes episódios políticos – a disruptiva aprovação de um diploma politicamente crucial com cláusulas de constitucionalidade improvável, a promulgação desse diploma declarado inconstitucional, a subsequente eleição, previsivelmente atrabiliária, de um dito tribunal constitucional para decidir em putativas acções relativas a futuros pleitos eleitorais – não são passíveis de idêntica caracterização. Antes denotam que a instrumentalização das instituições e a corrosão da ética política atingiram a cúpula do Estado. Se há poucos anos, num eventual processo de intenções, porventura se tivesse acusado pretéritos governantes de querer reinstaurar a ditadura, ter-se-ia agora, em obediência à honestidade intelectual, de caracterizar de forma similar a actual deriva política no arquipélago.

No mínimo, terá de se dizer que se ignorou o direito do Estado de direito democrático.

No actual simulacro de debate, as tonitruantes mas inanes invocações do “povo” perderam relevância. Passou-se das acusações de corrupção – que, invectivando todos os políticos, uniam a rua, incluindo os apoiantes e dependentes das sucessivas governações invariavelmente acusadas de corruptas – à promoção da violência e do medo. No futuro, perante a força e a intimidação, pode ser que a necessidade de sobreviver forje a aparência da anuência à vontade dos mandantes, mas, tal como com a inculcação do medo na era colonial ou sob o regime do partido único, apenas se conseguirá o crescendo da duplicidade e a decantação do ressentimento, o qual, tarde ou cedo, virá à tona. Entrementes, tornar-se-á cada vez mais difícil tanto uma efectiva reconciliação quanto o diálogo político entre os são-tomenses.

Diga-se, em São Tomé e Príncipe, não se pode deixar de conhecer os actores políticos, pelo que, salvo em ocorrências demenciais causadas pelo ódio ou, pela fidelidade ao dinheiro ou ao poder, forçosamente se entrevê a humanidade no opositor ou, frequentemente, se tem até um qualquer laço com ele. De outro ângulo, foi devido à apartação da terra e das suas gentes que alguns colonos, cobardemente apoiados nos seus serviçais, foram valentes a martirizar os indefesos ilhéus em 1953. Foi também por isso que, durante o regime de partido único amparado por tropas angolanas, cubanos foram mentores da instilação do medo, ambiente que alentou os torcionários dos são-tomenses que ousaram duvidar das “verdades” impostas pela ditadura dita revolucionária. Esperemos que outros, que não são-tomenses, não lhes sucedam como causa, mesmo se remota, de danos irreparáveis por um horizonte temporal concebível para todos os que se reclamam da pertença são-tomense.

Para já, registe-se a perda da irmandade que a democracia parecia ter reparado, por ter induzido ao diálogo quem estivera num ou até em ambos os lados da barricada durante a ditadura no pós-independência. Registe-se, igualmente, o provável sofrimento interior dos arregimentados para a mudança que também parece querer ser, a seu modo, irrestrita e revolucionária. Se os hoje remetidos para a oposição agem inconsequentemente por via da raiva da impotência perante a força, aqueles, conquanto agrilhoados pela fidelidade clientelar, não deixarão de estar atravessados por dilemas de cariz moral.

Inquirido se “valeu a pena”, um abnegado militante da independência, íntegro e, por isso, sem um vintém ao cabo de uma arrastada vida de sofrimentos, respondeu “sei lá…, eu sei lá…”, o que não pode ser traduzido senão por indisfarçável vergonha e por profundíssima tristeza com o destino da terra que, à época da independência, se cria votada a ser uma terra de leite e mel. Tristeza e vergonha com que os mártires de Batepá – que para muitos são-tomenses estão vivos e para outros deveriam ser uma referência – não deixarão de contemplar a descrença, a desconfiança e, até, o ódio corrosivo e inútil que, em definitivo, parecem ter assentado arraiais no arquipélago.

Oxalá não…

Palácio Presidencial de São Tomé e Príncipe / photo by Ministério das Relações Exteriores / CC BY-ND 2.0

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Augusto Nascimento

Researcher at CEI-IUL. Researcher at Centro de História (ULisboa). PhD in Sociology (ULisboa). Previously worked as a development worker in São Tomé e Príncipe and as a researcher at the Instituto de Investigação Científica Tropical in Lisbon. He published several articles about São Tomé e Príncipe and Cape Verde in national and international scientific journals.

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