África a pensar-se a si mesma: os ‘Ateliers de la Pensée’ em Dakar
Os últimos dias do mês de Outubro foram férteis nas comunicações de intelectuais africanos e da diáspora (francófonos) sobre o continente africano. Nos Ateliers de la Pensée, organizados por Achille Mbembe e Felwine Sarr, uma concentração pouco habitual da intelligentsia africana com um objectivo muito específico: o de representar África, em África, por africanos. O objectivo declarado é o de criar novas formas de pensar o continente. Africanos a falar das suas próprias sociedades e formas sociais, sem pedir licença e sem confrontos espúrios e estéreis.
Representações
É uma “batalha pelas representações,” uma batalha contra o absoluto negativo que incapacita África e os africanos. As representações “sitiadas”[1] nas mãos daqueles cujo poder é também o poder de dizer “o que é” a realidade, africana, e que normalmente estão de fora a olhar para dentro, num continente de externalizações múltiplas. Para Achille Mbembe, África precisa de voltar-se para si, de ser o seu próprio centro.
“África precisa de auto-estima” e “deixar de ter vergonha de si”, foi uma ideia sobejamente repetida nas várias intervenções de Sarr, que no início deste ano editou “Afrotopia”, de onde nos diz que é tempo de África se deixar “medir” e comparar através de indicadores que procuram a presença e ausência de símbolos da modernidade.
“As sociedades africanas contemporâneas vivem uma crise ligada à viabilidade das antigas práticas reguladoras da vida social. As formas antigas já não funcionam muito bem e a transição para o novo demora a actualizar-se (…). O homem africano contemporâneo está dividido (déchiré) entre uma tradição que ele já não conhece realmente e uma modernidade que lhe caiu em cima como uma força de destruição e desumanização” (Sarr, 2016a: 35).
O papel da (des)colonização
As instituições herdadas das descolonizações são inoperantes, porque se deu ao continente “um prêt-à-porter societal”, de instituições que “funcionam no Ocidente e na América do Norte pois foram produzidas pela História, por uma dinâmica interna que respondia às necessidades dessas sociedades. Não é o caso de África.” (Sarr, 2016b).
As elites africanas do passado foram incapazes de levar a cabo uma reflexão sobre as formas sociais que melhor se adaptavam ao continente, e as de hoje não têm desculpa para não procurar redesenhar a partir do erro (Sarr, 2016b).
Encerrar o capítulo da descolonização passa, também, por descolonizar as significações, dando visibilidade à efervescência de um pensamento que se re-apropria das suas origens a partir da diáspora como o sublinha Nadia Yala Kasukidi, para quem descolonizar quer dizer por de lado aquilo a que chama de arrogância epistémica e colocar-se as questões “Quem são os sujeitos autorizados a produzir os conhecimentos? Quais são os objectos reconhecidos como dignos de estudo no seio das instituições? Onde são produzidos os conhecimentos reconhecidos como válidos, legítimos?”
Para outra das participantes nos Ateliers de la Pensée, Leonora Miano, é preciso refundar as relações históricas dentro da francofonia. A autora do recém editado “Imperatif Transgressif” diz-nos que é a França que precisa de ser descolonizada. É a língua que precisa de ser liberada da sua dimensão colonial e, para tal, em 2012, criou o Prix Mohogany du Roman. A necessidade de descolonizar a França não se fixa no suspeito do costume, i.e. Sarkozy, e no seu discurso de Dakar onde afirmou que “o homem africano não entrou ainda o suficiente na História.” Esta necessidade fixa-se também num “insuspeito” François Hollande que arrogantemente afirmou, em 2014, por ocasião da Conferência da Francofonia, que “foi em francês que os povos se descolonizaram, em francês que acederam à independência e à liberdade.” Miano ironiza, dizendo, que possivelmente esses mesmos povos terão mesmo “acedido à inteligência e humanidade em francês”.
O mesmo François Hollande que, em 2012, discursara em Dakar dizendo que o tempo da Françafrique terminou que “hoje” há a França e África. Os políticos franceses, porém, não deixaram de considerar a sua posição em África como central para a sua política externa, como se pode constatar pela passagem de Rama Yade e Manuel Valls, no início do mês passado, por Dakar (ambos possíveis candidatos às presidenciais de 2017). Quem não acredita nos elogios que hoje substituíram a arrogância do passado é Felwine Sarr, que considera que África é olhada com cobiça por aqueles que ontem a desqualificavam.
Pensar África e o continente Africano
Mas estes Ateliers de la Pensée não se terão focado apenas sobre os colonizadores, mas sobre o continente e as suas figuras de proa e seus discursos, as suas propostas para o futuro e outros assuntos importantes da experiência no mundo dos africanos de hoje, como a migração e os seus dramas. Dramas esses que constituem, para Achille Mbembe, as fronteiras como o dado fundamental do nosso tempo, “num mundo caracterizado por uma desigual redistribuição das capacidades de mobilidade, e onde, para muitos, mover-se e circular constituem a única chance de sobrevivência” (Mbembe, 2016: 9), problema que afecta muito particularmente os africanos com os seus “passaportes fracos”.
Mas se há coisa que os Ateliers de La Pensée parecem ter procurado esbater são mesmo as fronteiras (intelectuais, simbólicas) do pensamento sobre o continente africano, chamando à partilha intelectual escritores e académicos de vários quadrantes e origens, reunidos com um objectivo comum de renovar o pensamento crítico afro-diaspórico e lançando as sementes para novas edições.
Entre os participantes desta primeira edição: Alain Mabanckou (escritor), Souleymane Bachir Diagne (filósofo), Elsa Dorlin (filósofa), Francoise Verges (história e ciência política), Leonora Miano (escritora), Mamadou Diouf (historiador), Celestin Monga (economista e ensaísta), Abdourahman Waberi (escritor), Yala Kisukidi (filósofo), Hourya Benthouami (filósofo), Lydie Moudileno (crítica literária), Severine Kodjo-Grandvaux (filósofa), Dominic Thomas (crítica literária), Benaouda Lebdai (crítica literária), Boubacar Boris Diop (escritor), Ibrahim Thioub (historiador), Aminata Diaw (filósofa), Ebrima Sall (sociólogo), Felwine Sarr (economista e ensaísta), e Achille Mbembe (historiador).
Esperamos com ansiedade próximos resultados deste encontro de intelectuais que seguramente criará bases para muitas reflexões no futuro.
Bibliografia:
Mbembe, Achille. 2016. Politiques de l’inimitié. Paris. Éditions La découverte.
Miano, Léonora. 2016. Impératif Transgréssif. Paris. Éditions L’Arche
Sarr, Felwine. 2016a. Afrotopia. Paris. Éditions Philippe Rey.
Sarr, Felwine. 2016b. Entrevistado por Fabien Offner. En Afrique, le défi est celui de la reconquête de l’estime de soi.
[1] “Representations under siege”, expressão utilizada por Michael Taussig em Nervous System.
Achille Mbembe, Photo by Heike Huslage-Koch / CC BY-SA 4.0
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