Na Gâmbia, Yahya Jammeh Reconhece a Derrota
Um pouco por todo o mundo a notícia do reconhecimento da derrota eleitoral de Yahya Jammeh, contra o candidato da coligação da oposição Adama Barrow, foi registada com surpresa. Tendo pautado o seu “reinado” pela excentricidade sempre presente – da qual a pretensa capacidade de cura do VIH é apenas um exemplo relativamente inofensivo – na hora da derrota, não poderia deixar a teatralidade que o caracterizou, sendo a ligação telefónica entre Jammeh e Barrow mostrada na televisão nacional em directo.
A notícia foi bem recebida mas, ao mesmo tempo, um pouco por todo lado revelou-se também inesperada, face ao exercício do poder de Jammeh, que durou 22 anos, sempre ensombrado por acusações de autoritarismo e violações várias dos direitos humanos e tratados internacionais.
Em Julho de 1994, Yahya Jammeh encabeçou um golpe militar que depôs Dawda Jawara. Na altura com apenas 29 anos, tenente no exército, prometia não se perpetuar no poder, criando no entanto a “Alliance for Patriotic Reorientation and Construction” (APCR) em 1996 e apresentando-se a eleições. Já em 2011 (17 anos depois e já no seu quarto mandato) prometia estar preparado para se manter no poder durante um bilião de anos. Logo em 1995, uma nova Constituição foi preparada pela Comissão de Revisão Constitucional, e revista pelo AFPRC (Armed Forces Provisional Ruling Council) na semana anterior à aprovação por referendo em Agosto de 1996, assinalada pela Aministia Internacional como um perigo para os direitos humanos, já que o documento reintroduz a pena de morte que deixara de ser a pena máxima apenas anos antes. Apenas em 2012 voltaram as execuções.
A presidência do pequeno território oeste-africano, pelo “caricatural ditador”, foi sempre pautada pela ambiguidade tanto ao nível regional como internacional (sendo que a nível interno foi sempre autocrático e apostando na divisão). O seu discurso anti-nepotismo, anti-neo-colonial foi acompanhado por uma extensa rede de relações com figuras do poder armado da região – entre eles Charles Taylor, ex-ditador da Libéria; Ansumane Mané, guerrilheiro do PAIGC que encetou um golpe de Estado contra Nino Vieira em 1998; Salif Sadio do MFDC; havendo várias suspeitas de relações próximas com o regime de Muamar Qadaffi – jogando muitas vezes nos dois campos sob a capa de pretenso intermediário por um lado, e facilitador no outro, sendo o separatismo de Casamança apenas um exemplo.
A postura do líder gambiano em relação à sua política externa foi também, quase sempre, uma de desafio; bem expresso nas relações tensas com o seu único vizinho Senegal, quer em questões políticas como no conflito de Casamança e na sua relação com os seus congéneres, como em termos económicos: em Abril de 2016, unilateralmente, Jammeh multiplicou a taxa aduaneira para os transportadores senegaleses 100x, conseguindo apenas o estrangulamento económico do país, pois na sequência as associações de transportadores senegaleses levaram a cabo um boicote total das redes viárias durante mais de três meses.
Chamado de “ditador errático”, “cartoonish dictator”, ou “wannabe all-American”, Jammeh é na verdade como um daqueles ditadores tão bem descritos no romance de Ahmadou Kourouma, “En attendant le vote des bêtes sauvages”, convocando forças obscuras (ou não se tratasse de um presidente-féticheur) e radicando a génese da sua acção na violência, a única coisa que consistentemente aplicou. Foi esse o que registo por que pautou, por exemplo, as ameaças às pessoas LGBT. Durante o seu regime, jornalistas foram mortos em circunstâncias inexplicáveis; “condenados à morte” foram executados (em 2012) em violação do Pacto Internacional sobre os Direitos Políticos e Civis depois de mais de 20 anos sem a aplicação da pena capital. O tratamento da oposição e dissidência também foi por várias vezes assinalado, como foi o caso dos opositores e membros do partido UDP, entre 2010 e 2013. Antigos “companheiros de armas”, tais como Baba Jobe, chefe da juventude do APRC, também não escaparam à perseguição.
Yahya Jammeh parece, apesar de toda a sua excentricidade, o caso clássico do ditador que se isolou progressivamente no poder, afastando antigos camaradas, esmagando a dissidência e o contraditório. Progressivamente também isolou o país em termos diplomáticos e económicos, hostilizando aqueles que lhe pediram responsabilidades (países ocidentais e países da região, através da CEDEAO) apenas para se aliar circunstancialmente a lógicas criminosas (suspeitas de comércio de diamantes de sangue; tráfico de droga; tráfico de armas), procurando ainda um lugar na geopolítica religiosa que separa a “solidariedade islâmica” do “sistema internacional dos direitos humanos”, apostando recentemente na proclamação da Gâmbia como República Islâmica, segundo algumas análises “para escapar da falência”.
Nos últimos dois anos, no entanto, um “outro” Jammeh com uma linha de actuação aparentemente diferente criminalizou a Mutilação Genital Feminina e interditou o casamento precoce, dando alguma esperança aos activistas pelos direitos das mulheres no país.
E agora, uma última tentativa de “lavar a cara”, apesar de que antes mesmo da eleição se previa já a derrota, ou, no caso de fraude a revolta popular.
A história ensina-nos a ser prudentes e a desconfiar daquilo que parece fácil demais. O poder só passará de mãos em Janeiro, e até lá existirão movimentações, como as que se verificam já…
Photo: IISD/Earth Negotiations Bulletin, CC BY-SA 3.0
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