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O Populismo do Liberalismo

No dia 6 de Março de 2017, o Professor Cass Mudde veio a Lisboa dar uma conferência sobre populismo na Culturgest. Nesta apresentação, ele explicitou o conceito em questão e as suas manifestações práticas no mundo contemporâneo.

O populismo anti-liberal

De acordo com a conceptualização de Mudde, o populismo não é uma forma de demagogia ou um jeito folclórico de estar na política. É sim uma ideologia pouco substantiva que postula a existência de um povo puro e homogéneo contra uma elite governante corrupta e desligada dos interesses populares. Desta forma, os populistas falam sempre como outsiders em nome do povo contra as elites corruptas estabelecidas. É através desta conceptualização que actores políticos como Donald Trump, Marine Le Pen ou Nigel Farage são definidos como populistas.

O Professor Mudde revela que a razão porque o termo populismo preocupa tantas pessoas hoje em dia é porque se pensa que a ascensão do populismo coloca em causa as atuais democracias liberais ocidentais. Contudo, o populismo não coloca a democracia diretamente em causa. Tal como Mudde salienta, o populismo é democrático e só pode existir em democracia. É até uma forma de democracia extremada (i.e. a vontade da maioria). O “problema” é que o populismo coloca em causa o liberalismo. Rejeita check and balances, a sociedade aberta/plural e os direitos das minorias em detrimento da vontade popular maioritária. O populismo é assim uma forma de democracia iliberal. Consequentemente, é o liberalismo que se vê ameaçado pelo populismo.

Democracia e liberalismo

O medo que o liberalismo tem do sufrágio popular não é novo. Desde Immanuel Kant aos founding fathers americanos que os liberais sempre sentiram que a vontade popular/maioritária poderia ser profundamente iliberal. Ademais, a tensão entre democracia e liberalismo já foi amplamente discutida em filosofia política. O liberalismo incorporou a democracia no seu sistema de governo porque não conseguiu legitimar logicamente um regime autoritário que impusesse a liberdade. Desta forma, o que assistimos hoje em dia é a continuação desta tensão entre dois pólos antagónicos que são a democracia maioritária e o liberalismo.

O liberalismo populista

Talvez o mais irónico neste processo é que o próprio liberalismo usou uma retórica populista para se impor no ocidente. As duas grandes revoluções liberais, a Americana e a Francesa, fizeram-se precisamente porque os revolucionários falaram em nome de um povo puro contra elites corruptas que não teriam legitimidade para exercer poder. Em França, a volonté générale, a nação pura contra uma aristocracia malévola e o povo livre (e igual) foram argumentos usados para o objectivo da conquista liberal. Nos EUA, a retórica contra uma monarquia ilegítima e tirana em prol de um recém formado povo americano deu origem a uma declaração de independência que postulava o emblemático “all men are created equal”.

Hoje em dia o liberalismo é defendido pela generalidade das elites políticas ocidentais. Contudo, não só o liberalismo tem origens populistas, como os próprios valores de liberdade e igualdade são de carácter populista (e anti-elitista). Há uma certa ironia no facto de que são atualmente as elites estabelecidas que defendem valores igualitários e anti-hierárquicos. A constatação de que o liberalismo é uma filosofia política anti-aristocrática não é uma novidade. Já Nietzsche, no seu tom afirmativamente elitista, definiu o liberalismo como a moralidade da “animalização de rebanho”.

Liberalismo em piloto automático

O Professor Mudde revela que o populismo ocidental contemporâneo coloca em cima de mesa questões que o liberalismo político tentou retirar da discussão pública. Nomeadamente, questões de identidade nacional, imigração ou a pena de morte. Como tal, os liberais no ocidente queixam-se agora de que quem coloca estas questões na discussão pública é populista. Mas o termo populista não deixa de ser um termo carregado de sentido ideológico. Primeiro, dá a entender que um governo de especialistas/tecnocratas liberais é preferível a um modelo onde reina a soberania popular. Depois, “populista” não deixa de ser um termo alternativo para “incivilizado” ou até para “irracional”.

Porém, o liberalismo político baseado no sentido crítico e na escolha livre de representantes encaixa mal na atual postura elitista/tecnocrática que visa colocar a democracia liberal em piloto automático, isto é, em modo de insensibilidade perante as escolhas individuais e eleitorais.  Ademais, as origens populistas (anti-elite) do liberalismo colocam o liberalismo numa posição difícil. Ao mesmo tempo que condena as pretensões dos partidos populistas, tem dificuldades em fazer explicitamente (e coerentemente) a defesa do elitismo. Tal enfraquece a narrativa que sustenta o modelo demo-liberal na consciência colectiva dos indivíduos.

Em última instância, são as incapacidades do liberalismo em lidar com desejos extra-liberais (como a necessidade de identidade colectiva) que criam as reações populistas. Estes são desejos que vão para além da liberdade e da igualdade individual e que observámos por toda a história. Até mesmo o liberalismo se impôs através da apologia da nação. Contudo, à medida que apura na prática o individualismo do seu ADN, esta filosofia política tende para a desnaturalização.

Veja a intervenção do Professor Cass Mudde na Culturgest aqui.

La Libert guidant le peuple by Eugène Delacroix / Public domain

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Filipe Faria

Research associate at CEI-IUL. PhD in Politics (King’s College London). Research interests: Social and Political Philosophy, Political Economy, Biopolitics.