A abrasiva situação política em São Tomé e Príncipe: por quem os sinos dobram?
Nada do que desditosamente se está a passar em São Tomé e Príncipe constitui uma surpresa.
Desde há décadas, a paulatina transformação da afabilidade em acrimónia no trato social prenunciava a violência que ora se tenta impor pela contenção e pelo medo. Ao longo de anos, várias circunstâncias concorreram para a subversão dos fundamentos do Estado de direito democrático e para a adesão da rua a sucessivas soluções políticas com tanto de salvífico quanto de ilusório.
Podemos ir longe e culpar o colonialismo. O seu maior pecado foi, não o da famigerada “exploração do homem pelo homem”, antes o do desprezo pela formação das pessoas. Rendido ao dinheiro, o regime colonial só despertou tal objectivo quando as circunstâncias lhe impuseram a impossível meta de conquistar o coração dos colonizados. Em 1975, o défice de preparação dos ilhéus era enorme mas, ainda assim, seria possível governar o São Tomé e Príncipe independente em paz e a bem das pessoas.
Uma pretensa “luta” a destempo, nominalmente contra o colono, na prática pelo poder e contra a outra parte dos ilhéus, foi o gérmen de inimagináveis infortúnios. O regime ditatorial saído da independência ainda beneficiou de um certo sentido da ordem e do acatamento da autoridade herdados da era colonial. Mas o regime cedeu porque, ao invés do prometido bem-estar, sobrevieram privações extremas e injustas. Em todo o caso, sem embargo da concentração de poder e da apropriação indevida de recursos, trilhara-se um caminho que muitos tinham julgado como necessário e condição de um futuro melhor. Desenganados, em 1991 os ilhéus castigaram o partido histórico da independência. Porém, os ilhéus mostrariam estar reféns de uma trágica propensão para a adesão a-criteriosa a propostas supostamente redentoras, todas elas chegadas de fora, a saber, do MLSTP e de Pinto da Costa, de Miguel Trovoada, de Fradique de Menezes e de Patrice Trovoada.
Há semanas, um são-tomense disse-me que Patrice Trovoada estava a caminhar para uma ditadura pela via democrática.
Retorqui que que tal era uma impossibilidade, porque não há forma democrática ou legal de transmudar o apoio popular nas urnas numa prática autocrática e ditatorial sem, num qualquer momento, derrogar o direito democrático. Na citada asserção vislumbrei um conformismo envergonhado que visava buscar uma justificação para uma evolução julgada inelutável. Tal raciocínio denota vergonha pela opção errada do “povo”, assim responsabilizado por uma vez mais se ter deixado enlear, por se mover, não pela consciência, mas pelo ressentimento, pelo moralismo primário e, não paradoxalmente, pela venalidade. Talvez a evolução política seja inelutável, mas não há para ela nem justificações nem desculpas, menos ainda, a da legitimidade democrática que não foi dada para tal deriva. Terá sido dada, sim, para a execução da justiça contra os corruptose contra os ladrões, justiça que agora se nega.
Após a implantação de um Estado de direito democrático em 1990, tudo se fez para o minar, incluindo o banhodespudoradamente introduzido pelos políticos, expediente que, somado às privações, abriu caminho à servidão ao dinheiro, da qual resulta a actual corrosão política e social. Hoje, lançam-se os são-tomenses contra os outros… As instituições, esteios das liberdades individuais e da decência da vida colectiva, estão a ser vilipendiadas quando não pura e simplesmente arrasadas.
Vejamos, depois da criação de um tribunal constitucional de forma inconstitucional, por uma maioria simples de deputados que designou para o dito tribunal um painel de “juízes” – que, nesta circunstância, não podem deixar de ser de facção! –, eis que a polícia ensaia barrar e posteriormente derroga a execução de uma sentença de um tribunal. Sem poder apreciar o mérito jurídico da sentença e devendo, em obediência a um prudente princípio da dúvida, equacionar até a possibilidade de politização da sentença, direi que não se pode negar esta sem se repudiar todas as outras. Ademais, ordenar à polícia a obstrução da execução de uma sentença afigura-se o passo expedito para pôr eventuais decisões dos tribunais em conformidade com os ditames de poderes fácticos, justamente enquanto nos tribunais não estiverem juízes governamentalizados, a exemplo do sucedido na era dos tribunais revolucionários e, lembre-se, no tempo colonial (ainda assim, não nos iludamos… sem que tal signifique branquear o moralmente insanável colonialismo, não sei se não era mais fácil obter justiça nos derradeiros anos do colonialismo do que no presente…). Por fim, frontalmente contra a separação de poderes e com base numa leitura capciosa da lei, a Assembleia destitui o Supremo Tribunal de Justiça… Será que, comungando das ilusões dos colonos, os que aprovaram tal enormidade pensam ficar eternamente no poder? Porventura, imaginar-se-ão ali por todo o tempo possível ainda que à custa da corrosão da sua própria moral e do espezinhar de outros são-tomenses a quem ontem apertavam a mão e a quem, quiçá mais cedo do que tarde, poderão ter de pedir desculpa? Sem instituições fortes e independentes, quem garantirá, hoje e amanhã, os direitos de todas as pessoas sem excepção?
Porque é que o que se passa hoje é mais grave do que tudo quanto se passou nos derradeiros decénios, mormente depois da independência quando um “inebriamento” colectivo parecia justificar o que hoje temos por desvarios? Porque, diferentemente de convulsões anteriores, os fautores da actual desgraça não podem alegar que não lhes foi dito o que de anti-democrático e ilegal têm as situações que estão a delinear.
Se já há mais de vinte anos me dispensei do mínimo de crença no futuro de São Tomé, não será na presente conjuntura de destruição da última réstia de decência cívica e política que vou alardear optimismos balofos e patetas. O que nos é dado ver? À boca pequena, entre ameaças, esquecendo a afinidade e a contiguidade forçada de cada momento, os são-tomenses que ora julgam não ter razões para ter medo só já nomeiam os outros com ódio. Por muito volátil e movente que seja a geometria da vida colectiva, não sei como se vai sair deste ódio uma vez mais vincado em São Tomé. Ainda assim, e por não restar outra alternativa a quem quer crer na natureza humana, desejaria que, se ultrapassada esta crise, os são-tomenses fossem capazes de um efectivo diálogo político atinente à reconstrução da coesão social. Mas não tenho razões para crer.
Assim, por quem os sinos dobram?
Pelos são-tomenses, para quem certamente se desvanesce completamente a já ténue esperança numa vida melhor num horizonte temporal concebível. Por quem partilha com eles a condição humana e várias afinidades tecidas pela história. Por fim, por nós, historiadores, cientistas sociais e pessoas de opinião pelo recorrente aviltamento da condição humana tão ao arrepio do que costumeiramente ensinamos como desejável e, enganadoramente, como provável ou, pelo menos, possível. Por exemplo, em São Tomé e Príncipe, onde, supôs-se, existiam condições para uma bem-sucedida aventura humana… com a qual até 24 de Abril de 1974 puderam sonhar generosos nacionalistas são-tomenses.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador. Edifício do Supremo Tribunal de Justiça, São Tomé / foto de Chuck Moravec / CC BY 2.0
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.