As eleições presidenciais e a política externa da França: ser ou não ser europeia?
O que nos interessa a França?
Há algumas décadas atrás a questão seria dispensável. Portugal desde o século XVIII até à década de 1980/90 estava culturalmente centrado na França. Paris era a capital cultural de Portugal, e a nossa cultura e debate político refletiam isso mesmo. Hoje é menos evidente por que nos importaria a França para além da simples curiosidade e da enorme diáspora de origem portuguesa em França.
É verdade que o eixo Paris-Bona se tornou cada vez mais o eixo Berlim-Paris. Ou seja, o peso de liderança tradicional da França na política da integração europeia passou para a Alemanha unificada. Mas convém não exagerar. Isso significa que, a começar pela própria Alemanha, a França está longe de se ter tornado irrelevante.
Não sabemos se António Costa e Augusto Santos Silva abriram uma primeira garrafa de champagne ontem. Mas é claro que para a política externa europeia do governo português seria um golpe praticamente fatal uma segunda volta entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, ambos hostis ao euro e este último defensor da adesão da França à ALBA – a aliança chavista nas Américas. Uma UE sem a Grã-Bretanha é um desafio, mas é concebível. Uma UE sem a França seria inconcebível. E sem a França seria impossível e inútil a tentativa de dinamizar um bloco dos 7 da Europa do Sul, em que o governo português se tem empenhado no quadro das dinâmicas de coligação dentro da UE. Claro que nisso como noutros aspectos Macron ainda não se definiu plenamente, mas alimenta esperanças.
Todos contra o sistema
O paradoxo central das eleições francesas é que uma campanha dominada por críticas de todos os candidatos ao “le système”, ao sistema dominante, acabou com uma vitória na primeira volta de um candidato centrista visto por muitos como representante desse sistema, Emmanuel Macron.
Isso pode estar relacionado com o facto de a França, apesar dos seus problemas, estar longe de ser um país moribundo. Macron promete mudanças mas sem radicalismo. A França continua, afinal, a ser uma das maiores economia mundiais, apesar de como outros países europeus querer crescer mais. Tem 10% de desempregados, muito deles jovens, mas também um Estado previdência e um serviço de saúde que significa que mesmo estes têm muita coisa a perder. Paris e a França conseguem naturalmente o cachet que tantos países lutam por conseguir para o seu turismo e os seus produtos.
Se é assim por que é tantos franceses estão tão insatisfeitos? Estão desde logo insatisfeitos com o sistema político. Afinal os candidatos oficiais dos dois principais partidos, a direita Republicana e o PS francês, ficaram pelo caminho. Mas esta é uma velha tradição francesa, com as principais correntes políticas a passarem por vários ciclos de fragmentação e rassemblement – os mais famosos reagrupamentos recentes protagonizados por de Gaulle e por Mitterrand. É por isso que a França teve nos últimos dois séculos cinco repúblicas, dois impérios e duas monarquias.
A insatisfação, segundo um aprofundado estudo recente da economista francesa Claudia Senik tem, no entanto, raízes mais profundas. O que faz com que, segundo Senik, os franceses sejam dos povos declaradamente mais infelizes. Destacamos aqui três razões. Primeiro, o sentimento de marginalização de sectores vários da população, nomeadamente dos subúrbios das grandes cidades ou de zonas e sectores afetados negativamente pelo impacto muito desigual da globalização e da robotização. Isto é algo que torna fácil a mobilização populista. Segundo, a insatisfação com a ausência de reformas. Todo o mundo diz à França que deve reformar-se. Mas tal como em Portugal o quê reformar, e como, não é evidente e consensual. E, tal como em Portugal, em França muitos querem reformas, mas poucos estão dispostos a pagar um custo pessoal por isso: os outros que se reformem! Por fim, há uma insatisfação dos franceses com a perda do estatuto internacional da França. Se do ponto de vista de Portugal, pode parecer evidente que o Quai d’Orsai ainda pesa muita na política mundial, os franceses vêm sobretudo o facto de a França já não ser a maior potência mundial, e de o francês ter perdido o lugar de lingua franca internacional para o inglês.
Como será a política externa do próximo presidente da França?
A resposta curta é, não sabemos. Neste campo mais do que noutros nem sempre a retórica eleitoral corresponde à ação governativa, até porque o resto do mundo tende a perturbar os melhores planos. Mas temos algumas pistas.
Será que o vencedor da próxima noite irá alterar muito a política externa francesa? Por regra, a resposta a esta questão tem sido, não muito. Mas este caso pode ser diferente, daí tanto interesse pelas eleições em França a nível internacional.
A possibilidade de uma grande mudança está sobretudo presente no caso de uma improvável mas não impossível eleição de Marine Le Pen. Duas semanas em política são muito tempo. Le Pen é uma candidata experiente, carismática, com capacidade oratória. Macron é relativamente verde como candidato, e tem muitos inimigos internos e externos, mais ainda desde que se tornou o homem a abater como líder da corrida. Vivemos numa era de ciber-ataques e de ataques terroristas. Pode ser que o eleitorado tenha ganho alguma resiliência a eles, mas importa não subestimar os imprevistos. Afinal, há alguns meses atrás parecia que François Fillon seria o próximo presidente da França.
Le Pen arriscou ser explicitamente a candidata da saída do euro. Esta parece ser uma posição popular com o seu eleitorado, mas impopular no eleitorado francês em geral, o que reforça os obstáculos a uma vitória sua. Mas significa também que só o facto da sua vitória seria altamente perturbadora dos equilíbrios e consensos indispensáveis para fazer continuar a funcionar o euro e a UE.
Há também a proximidade de Le Pen à Rússia de Putin, que visitou no Kremlin há poucas semanas atrás, e cujos bancos financiaram a sua campanha. Claro que Le Pen também se aproximou de Trump. Mas este último ainda há pouco defendia Putin e declarava a NATO obsoleta, e só de forma contrariada parece ter mudado de discurso. Le Pen afirmou que a França se retiraria do comando integrado da Aliança Atlântica. Quando pomos a sua manifesta admiração de Putin a par das suas críticas radicais às instituições de Bruxelas (NATO e UE) resta muito pouco de tradicionalmente ocidental na política externa de Le Pen. A ser eleita e a avançar com o que tem anunciado Le Pen significaria uma mudança radical na diplomacia francesa altamente perturbadora das dinâmica políticas e económicas na Europa e mesmo a nível global. O paradoxo central da política de Le Pen é que, de par com a afirmação da sua fé na grandeza da França, vem um enorme receio do mundo exterior e um apelo ao fechamento numa fortaleza que, entre outras coisas, teria grandes custos económicos para a França e dificultaria a sua projeção internacional.
Macron neste campo como noutros é acusado de ser pouco específico, ou de tentar agradar a gregos e troianos. No entanto é um defensor corajoso do projeto Europeu. Foi denunciado por isso como um exemplo do cosmopolitismo detestados pelos nacionalistas de esquerda e direita radical. Mas também fez críticas ao atual modelo europeu. Defende que a UE devia manter-se aberta no seu interior, mas forte no mundo. E que deveria ser nomeadamente uma forte defensora das empresas e dos empregos europeus, mas também das exportações europeias através de acordos com, por exemplo o Canadá e os EUA. Como fazer essa invejável quadratura desse círculo não é evidente ou fácil. Também defende maior integração e solidariedade ao nível da governação da zona euro. Mas não é claro que Berlim, por muito que lhe agrade uma alternativa europeísta a Le Pen, esteja disposta a ir tão longe como a criação de uma dívida comum. Quanto à NATO, Macron é um defensor da plena participação francesa, mas opõe-se à entrada de novos Estados membros.
Num ponto Macron e Le Pen estão de acordo – no reforço do orçamento militar e do combate contra o terrorismo e no regresso ao serviço militar obrigatório. Portanto a estarmos seguros de alguma coisa é que a França vive tempos de insegurança como alvo prioritário do jihadismo internacional na Europa. Infelizmente, mesmo a este respeito não há respostas simples, e elas exigirão, por um lado, muito mais do que meios militares, e, por outro, parceiros.
O que parece também evidente é que também as presentes eleições presidenciais francesas (como o Brexit ou nos EUA) se jogarão em torno da questão identitária: a França quer ser ou não ser europeia? Será que a França continuará a ser um pilar da União Europeia, ainda que com uma agenda reformista como defende Macron? Ou será que a França tentará liderar o desfazer da UE em nome da re-criação de uma Europa radicalmente nacionalista como defende Le Pen? Será que daqui a duas semanas na segunda volta da eleição presidencial francesa irá prevalecer o medo da UE, ou o medo de ficar de fora da UE?
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