As Eleições Presidenciais na Áustria: Um Resultado Inesperado
A derrota do candidato da Freiheitliche Partei Österreichs (FPÖ), Norbert Hofer, nas presidenciais austríacas de 4 de Dezembro de 2016, é apresentada pela comunicação social como uma travagem à investida da extrema-direita no Ocidente. Uma travagem importante pelo significado que lhe tinha sido atribuído após o Brexit britânico (Junho de 2016), a vitória de Trump nas presidenciais norte-americanas (Novembro de 2016) e perante as espectativas positivas do Front National de Marine Le Pen nas presidenciais francesas (Abril-Maio de 2017) e da Alternative für Deutschland de Frauke Petri nas legislativas alemãs (Setembro 2017). Persiste, contudo, o alerta sobre Viena pela esperada – e mais relevante – afirmação da FPÖ nas legislativas de outono de 2018.
O debate académico
Apesar das recentes dificuldades em prever cientificamente sucessos ou recuos dessa onda populista de direita, a comunidade académica monitoriza de forma contínua, há pelo menos duas décadas, essa área específica, o que permite hoje descrever a natureza dos sujeitos que a compõem e avançar hipóteses da sua evolução.
Das múltiplas dimensões do debate científico sobre o tema, podem destacar-se duas correntes particularmente relevantes para o caso austriaco: por um lado os analistas interessados na vertente comparativa entre a presente ascensão dos populismos de direita e o triunfo dos fascismos na Europa das décadas de 20 e 30 do Século passado (interesse frequentemente acompanhado por um corolário de denúncias e alertas); por outro lado os analistas mais atentos às peculiaridades dos protagonistas actuais e às variáveis de contexto, tanto nacionais como internacionais, que possam fazer prever o seu comportamento.
A dimensão histórica
No caso em questão, as duas abordagens são ainda mais significativas, devido à evidente carga histórico-simbólica do país que, em 1889, viu nascer o futuro chanceler do III Reich, Adolf Hitler. Aliás, a comparação entre NSDAP (o partido nazi) e FPÖ não é novidade e alcançou o seu pico mais polémico em 1999 quando, graças à liderança de Jörg Haider, o partido conquistou o 26,9% dos votos nas legislativas e formou o governo de coligação com o histórico partido centrista austríaco ÖVP.
Apesar da áspera polémica de então (que levou até às sanções da União Europeia contra a Áustria), a FPÖ não era de todo um newcomer na democracia austríaca, mas sim uma presença constante desde a sua fundação 46 anos antes: em 1956. Se não há dúvida de que a área política de onde surgiu a FPÖ foi a dos veteranos do nacional-socialismo da primeira década do pós-guerra, desde a sua fundação, o partido caracterizou-se por uma linha nacional-liberal de oposição ao sistema de alternância governativa estritamente bipartidário entre SPÖ e ÖVP desde 1945.
Longe de querer representar um reduto anti-sistema, a história do partido caracterizou-se, até meados dos anos 80, pela tentativa de sair da marginalidade, através de uma constante aproximação ao centro evidenciada na adesão à Internacional Liberal (décadas de 70) e na participação ao governo de esquerda da SPÖ (1983-86). Essa data marca também a ascensão do jovem Jörg Haider à liderança do partido. Haider impõe à FPÖ uma clara viragem à direita que determinará o sucesso eleitoral do partido na década seguinte e a sua centralidade no sistema político austríaco. O novo líder inaugura um discurso populista de oposição à partidocracia SPÖ-ÖVP (corrupção, clientelismo, má gestão do dinheiro público), à imigração e ao modelo multicultural.
Os apelos à democracia directa, contudo, acompanham um programa fortemente liberal: redução da carga fiscal, privatização das empresas de Estado, desregulação do sector económico. Uma fórmula que, antes dos alertas anti-nazi de 1999, foi classificada pelos analistas de liberal-reaganiana. Com esta linha, a FPÖ conquista quase 10% de votos nas legislativas de 1986 e enceta o caminho que o levará ao exploit do final do Século XX e a participação em vários governos estaduais da federação (o próprio Haider foi eleito governador da Caríntia em 1989 e em 2000). O jovem líder destaca-se também pela habilidade em gerir as tenções internas ao partido, entre a corrente nacional-conservadora, a populista e a mais radical nacional-germânica (nesse último contexto surgem os seus polémicos elogios ao III Reich) e em moldar o programa segundo as oportunidades do momento: do neutralismo em política externa ao apoio franco à NATO, do pangermanismo ao nacionalismo estritamente austríaco e anti-UE.
Crise e mudança de paradigma
Paradoxalmente o sucesso eleitoral e a chegada ao poder em 1999, em coligação com a ÖVP, decretou a crise do partido (má perfomance dos seus ministros no governo, agravamento do fraccionismo interno, fracasso eleitoral de 2002 com apenas 10% de votos). Com o abandono do líder Haider – que passaria a formar, em 2005, o partido autónomo BZÖ – a FPÖ envereda por uma linha ainda mais pragmática. O novo líder, Heinz-Christian Strache, desenha minuciosamente o seu discurso populista na demanda política vinda do eleitorado afectado pela crise económica mundial e, por isso, abandona qualquer laivo saudosista ainda presente em Haider.
Longe de ser uma mera operação de fachada, a estratégia de Strache insere-se naquela mudança de paradigma encetada também por Marine Le Pen em França, com a abjuração de facto do legado paterno. Entre os sinais mais evidentes dessa nova fórmula populista está a constituição, em 2011, da European Alliance for Freedom (EAF) onde a FPÖ joga um papel de relevo, juntamente com a FN francesa, na rejeição de outras estruturas transnacionais acusadas de extremismo, anti-semitismo, anti-americanismo. Nessa senda deve ser lida a viagem de Heinz-Christian Strache a Israel, em Abril de 2016, por convite do Likud (o partido de direita do actual primeiro-ministro israeliano Benjamin Netanyahu). Nessa ocasião, durante a visita ao memorial do Holocausto Yad Vashem, Strache condenou qualquer expressão de anti-semitismo e empenou o partido no combate comum do Ocidente contra o integralismo islâmico.
Nesse novo contexto europeu e ocidental deve ser lido o populismo da FPÖ: a oposição às elites nacionais e europeias em prol de uma reforma radical da UE, a denúncia da imigração em prol da defesa da identidade nacional contra a islamização (os turcos representam uma das comunidades imigrantes mais numerosas no país), o princípio da preferência nacional em matéria de welfare (desemprego, pensões, subsídios sociais às famílias) e a receita nacional-liberal para a economia (redução da carga fiscal, proteccionismo do mercado austríaco com eventual saída do Euro). A crise dos refugiados de 2015 permitiu ao partido potenciar ainda mais a eficácia desse discurso, acusando a UE de ter deixado a Áustria sozinha perante os fluxos de asylum seekers e migrantes económicos vindos da rota balcânica.
De facto, a FPÖ aposta nas dimensões mais sensíveis do eurocepticismo austríaco: o cariz tecnocrata, distante, pouco democrático da UE, o efeito económico negativo da adesão à moeda única, as repercussões do alargamento e do acordo de Schengen em termos de segurança das fronteiras e de identidade cultural. Esse discurso permitiu ao partido alargar a brecha aberta no eleitorado tradicionalmente de esquerda (em particular entre os trabalhadores, de sexo masculino, na casa dos 30 anos e instrução média-baixa). Os frutos são evidentes: o 21,4% da FPÖ nas legislativas de 2013 obrigou SPÖ-ÖVP a um governo de coligação já pouco apreciado na Áustria; com o 19,7% nas europeias de 2014, o partido reconquistou também a esse nível muito do eleitorado perdido na parentese da BZÖ de Haider (2005-2009); finalmente, nas eleições estaduais de 2015, a FPÖ tornou-se o segundo partido a seguir à SPÖ em vários estados da federação.
A rejeição de fórmulas ‘fascizantes’
Em todo esse percurso da FPÖ na época pós-Haider, Norbert Hofer tem sido, desde o princípio, uma peça chave na qualidade de conselheiro e colaborar entre os mais próximos de Strache. A campanha presidencial caracterizada por uma alternância de radicalização e moderação do discurso nos temas centrais do debate nacional e europeu aponta claramente para a prioridade da FPÖ em consolidar-se como partido de governo.
Por tudo isso, a FPÖ não será com certeza um factor de perturbação do sistema pelo menos nos seus três pilares fundamentais: a democracia representativa de partidos, a economia de mercado com livre circulação de capitais e mercadorias, a manutenção da neutralidade austríaca dentro do bloco ocidental. Jogará, pelo contrário, um papel importante na frente transnacional que se opõe ao cariz universalista do actual projecto europeu e, ao mesmo tempo, rejeita as fórmulas ‘fascizantes’ dos partidos Jobbik (Hungaria), Aurora Dourada (Grécia), NPD (Alemanha), etc.
Consequências para a Europa
O reforço dessa frente não é necessariamente sinónimo de implosão da UE, mas determinará sem dúvida um abrandamento do alargamento da União, nomeadamente no que diz respeito à Turquia e um acentuar-se das reivindicações soberanistas, principalmente na gestão das fronteiras externas da UE e internas entre os estados membros mais expostos aos fluxos migratórios. Ou seja, a FPÖ não representa o abismo em direcção a “nenhuma Europa”, mas sim uma voz cada vez mais relevante – apesar da derrota de Hofer – da procura de “outra Europa” diferente da que conhecemos pelo menos desde Maastricht (1992).
O problema pode surgir dos contornos ainda indefinidos desse projecto alternativo, sendo que na geopolítica dos grandes espaços – para utilizar a análise de Carl Schmitt dos anos 50 – a estagnação numa mera reacção nacionalista pode minar não apenas a UE, mas a própria Europa.
Norbert Hofer, Photo by Franz Johann Morgenbesser / CC BY-SA 2.0
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