Da Segurança Nacional à Estratégia de Defesa dos Estados Unidos da América: O que mudou?
Da National Security Strategy
A NSS é sempre um documento muito aguardado porque, geralmente, clarifica as grandes opções estratégicas americanas em termos globais. Quase sempre, nem sempre, podemos ler as novas prioridades regionais, o estilo mais isolacionista ou cooperativo nas relações internacionais e as grande apostas em termos de definição de grandes capacidades para os EUA previstas para os anos seguintes. Desde 1986, com a profunda transformação na Defesa dos EUA através da famosa lei “Goldwater-Nichols Act”, que encontramos neste documento, mais do que simples recomendações para a Segurança e a Defesa dos EUA, as grandes linhas de atuação política, externa e interna, dos EUA sobre e com o mundo. Nesta NSS de 2017, o Presidente dos EUA é claro: Os EUA vão continuar a liderar num mundo “que é cada vez mais perigoso” e aponta, concretamente, potenciais adversários e inimigos: China e Rússia; Irão e Coreia do Norte.
Na NSS as ameaças e riscos, que de uma forma mais ou menos direta, estão refletidos na maioria dos documentos estratégicos da NATO, da UE e da ONU mas neste, o peso relativo e a prioridade que lhe são atribuídos são diferentes. Em síntese, o terrorismo internacional continua a ser uma grande prioridade mas a “narrativa” centra-se nos adversários que podem contestar o poder americano quer regional quer globalmente, há referências aos desastres naturais mas a expressão “alterações climáticas”, presente nos NSS de Obama, desapareceu e a preocupação com a aposta nuclear, com o espaço e com o ciberespaço são evidentes.
Numa breve síntese, a NSS clarifica: o valor das alianças, desde a NATO aos parceiros privilegiados do Médio Oriente ou do Pacífico; identifica adversários e inimigos; aposta na economia, na Investigação, no desenvolvimento e na tecnologia, como ferramentas estruturais para garantir a “liderança” dos EUA no Mundo; assegura a proteção de fronteiras, da energia, do “equilíbrio ambiental” e dos fluxos incontrolados de populações e; dá um relevo maior aos domínios do nuclear, do espaço e do ciberespaço. Na Revista Militar escrevi um artigo que analisa com detalhe o documento. Um mês depois, o Departamento de Defesa anunciou a “decorrente” estratégia para a aplicar – NDS.
À National Defence Security
A NDS são, essencialmente, as grandes diretivas para as Forças Armadas (FFAA) dos EUA. Uma das grandes novidades, e pensamento de fundo presente em várias partes do document, reflete-se em expressões como: “We also incorrectly believed that technology could compensate for our reduced capacity for the ability to field enough forces to prevail militarily, consolidate our gains, and achieve our desired political ends. We convinced ourselves that all wars would be fought and won quickly, from stand-off distances and with minimal casualties”…” Moreover, deterrence today is significantly more complex to achieve than during the Cold War” (p.27). Esta autoanálise é ímpar face a outros conceitos estratégicos de outros países e realidades. Destacamos alguns pontos e vamos aprofundar o que “detalha” esta estratégia na parte que se pode ler de forma desclassificada:
– As FFAA, caso falhe a dissuasão (deterrence) mais complexa e difícil de alcançar, permitem à diplomacia a possibilidade de negociar em posição de força e têm de estar preparadas para vencer. O futuro estará assente em ameaças intraestatais. O terrorismo já não é a prioridade, são os possíveis adversários e inimigos, como os descritos na NSS, mas agora com mais detalhe, que mais preocupam os EUA.
– A imprevisibilidade das ações futuras têm uma relação direta com a rápida evolução tecnológica em todos os domínios operacionais (terra-mar-ar-espaço e ciberespaço). As FFAA têm de ser letais, resilientes e profundamente adaptativas. Os EUA contam com aliados “robustos” e fiáveis. Presume-se uma maior aproximação aos aliados da NATO e aos tradicionais fora desta aliança – Austrália, Nova Zelândia (Pacto ANZUS), Japão, Coreia do Sul…- e antevê-se uma profunda reforma estrutural na arquitetura de defesa dos EUA, em especial na forma de se organizarem para as operações.
– O facto de os adversários operarem em todos os domínios e, em especial, tirando partido de técnicas de subversão, de operações de informação e negando o acesso a áreas ou a sistemas, obriga a uma resposta mais inovadora. Todos os campos de ação têm de ser acompanhados e ultrapassados pela dinâmica das FFAA dos EUA: “Big data, inteligência artificial, sistemas de autonomia e sustentação, robótica, energia dirigida, hipersónicos e biotecnologia”. Aqui vemos as quatro grandes áreas geralmente denominadas de GRIN – Genetic, Robotics, AI & Nano que foram recentemente debatidas em “2077, 10 segundos para o futuro”, um programa da RTP1 com 4 episódios e que retratou com recurso a especialistas em várias áreas, como será o futuro nos próximos 60 anos. Daí o 2077 (2017+60)! Muita, mesmo muita coisa vai mudar a todos os níveis. E os EUA sentem que têm o poder de alterar esse caminho. O GRIN será um denominador comum no desenvolvimento de capacidades ao nível dos 5 domínios, bem como levará a questionar o paradigma da guerra, inclusive, na sua natureza.
– Tanto os atores estatais como não estatais (terroristas, redes criminosas transnacionais, cyber-hackers, e outros) poderão ter acesso às novas tecnologias pelo que, como forma de salvaguardar a superioridade tecnológica americana, é preciso alterar a forma como se investe, como se desenvolvem programas e como se protegem as Indústrias de Inovação em Defesa. Várias referências à superioridade Americana. O “excecionalismo” Americano que, desde cedo enforma o seu pensamento estratégico, está mais vivo que nunca: “the history of the US is inherently different from other nations (…) “the US has a unique mission to transform the world” “Americans have a duty to ensure, government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth” (Abraham Lincoln, 1863) (…) the US’ history and mission give it a superiority over other nations” (Lipset, 1996, American Exceptionalism: A Double Edged Sword, pp. 1, 17–19, 165–74, 197 -).
– Destaca-se uma crescente preocupação com a defesa do território dos EUA “homeland” nos domínios tangíveis (ataques diretos) e intangíveis (nos domínios do espaço e do ciberespaço). Recomendamos, a este propósito o livro “ghost fleet” que, embora ficcionado explica esta dimensão, através de suposto ataque cibernético, lançado do espaço sideral pela China, e que, literalmente, apaga os EUA.
– As principais prioridades do Departamento de Defesa que destacamos, em face do peso relativo destas ameaças, são assim: garantir a superioridade das FFAA dos EUA em todo o mundo; deter (deterrence) os adversários de atacar os interesses vitais do país; um aumento exponencial na cooperação interagências para ganhar eficiência e eficácia; uma maior partilha de responsabilidades e de esforço de defesa com os principais aliados para garantir ganhos efetivos de escala; defender as áreas comuns “common domains” e prevenir ações ou apoios de qualquer grupo terrorista contra os EUA e aliados e, conseguir manter/criar uma base de inovação industrial “National Security Innovation Base” sem competidor a nível global.
– As palavras cooperação, coordenação, conjunto e sinergia, deu lugar em 2018 à palavra Integração “U.S. interagency”. Requerem-se integração entre os agentes da Defesa, da Segurança Interna, da Economia, das Informações, da Justiça, da diplomacia, entre outros.
– Os EUA querem ser estrategicamente previsíveis mas operacionalmente surpreendentes “strategically predictable, but operationally unpredictable”, combater a coerção e a subversão “counter coercion and subversion” contra práticas económicas predatórias, de propaganda, de subversão política, do uso de proxies ou de forças militares para mudar a situação em áreas de interesse.
– As FFAA têm de garantir que: impedem agressões nas regiões do Médio Oriente, da Europa e do Pacífico; mitigam as ameaças terroristas e do uso de armas de destruição maciça; vencem uma grande potência e dissuadem qualquer tipo de ameaça nuclear. Para tal terão que: modernizar as forças nucleares (o que implica todos os componentes da Tríade); investir mais nos domínios do espaço e do ciberespaço; integrar e modernizar os sistemas de comando, controlo computadores e vigilância (C4ISR); investir na defesa antimíssil; e desenvolver capacidade para atacar dentro do espaço aéreo e terrestre de qualquer adversário “Joint lethality in contested environments”. De forma transversal às reformas a efetuar, chamamos a atenção para a necessidade de se conseguir a sustentação, a logística, a regeneração e a autonomia das forças em todos os ambientes e operações o que levará a uma transição de forças, centralizadas e de grande volume, para estruturas mais pequenas, dispersas e autossuficientes com incorporação de elevada tecnologia.
– Prevê-se uma reforma estrutural no modo como as FFAA se organizam em Ramos (Services) e Comandos (por exemplo: regionais – CENTCOM e funcionais – STRATCOM) para um “Global Operating Model”, que ainda está por perceber o que significará mas passará por uma organização baseada na ação /níveis: “contact, blunt, surge, and homeland”. Uma aposta muito forte na obtenção, desenvolvimento e capacidade de retenção de recursos humanos, em quantidade suficiente (ou seja votando atrás na anterior redução de efetivos) e de elevada qualidade “cultivate workforce talent”. A burocracia (em linha com o NSS, p. 28: “Bureaucratic inertia is powerful. But so is the talent, creativity, and dedication of Americans”) e a cultura da minimização completa de riscos deverá dar lugar a uma postura baseada em resultados e objetivos atingidos. A performance mede-se pela relevância e pela adaptabilidade às mudanças úteis e em tempo.
– Pede-se reciprocidade, partilha de esforço, mais investimento e risco mas garante-se a fidelidade aos principais parceiros e aliados. Fortificar a NATO, formar parcerias duradouras no Médio Oriente e aumentar as alianças na região da Ásia Pacífico. Será, mais, um caminho de dois sentidos: a força das alianças dependerá do esforço proporcional de cada um. Há um especial cuidado em prevenir as ameaças terroristas em África apoiando e criando parcerias locais.
Em síntese
A NDS 2018 é diferente das anteriores e ambiciosa. Reflete as grandes linhas da NSS, aprofunda conceitos e abre a curiosidade para a, deliberadamente omissa, explicação do caminho da operacionalização da estratégia “strategically predictable, but operationally unpredictable”.
O tempo da mudança, a aceleração das inovações tecnológicas num mundo “muito mais perigoso” obriga a repensar:
– Na forma como se gerem meios (Estratégia Genética), desde uma maior rapidez nos processos de investigação, de mentalidades, de aprovação, de disciplina orçamental (aceitabilidade enquanto prova da estratégia), de desenvolvimento e aquisição de capacidades até a uma cultura de permanente inovação e atenção sobre os possíveis adversários. Velocidade, logo tomada de decisão atempada, logo relevância;
– Na forma como se estrutura a defesa (Estratégia Estrutural), desde as organizações macro, a integração interagências até à simplicidade das forças, organizadas de forma mais ligeira, dispersa e descentralizadas. A NDS destaca um cariz reformista a incutir a todo o departamento de defesa. Para tal destaca alguns pontos que, de forma livre, se traduz na gestão do risco estratégico (na relação ends – ways – means);
– Na forma como se conduzem operações (Estratégia Operacional), em todos os domínios (terra-ar-mar-espaço e ciberespaço) com mais liberdade de ação, maior uso de tecnologias e sistemas automatizados e muito menos dependência logística e de sustentação.
Agradeço o apoio e os comentários do Professor de Estratégia do Instituto Universitário Militar, Major de Engenharia João Pinto Correia.
Photo by Andrea Hanks / Public domain
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