Guterres: O Homem para Fazer Possíveis dos Impossíveis
Dez anos com um trabalho de elevada complexidade e reconhecida capacidade à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e, no último ano, uma campanha extremamente eficaz do próprio candidato (que, recorde-se, visitou todos os 15 países que estão nesta altura no Conselho de Segurança (CS) e mais alguns com influência global, regional ou mais diretamente sobre os que estão no Conselho) e da diplomacia portuguesa (em Lisboa com a equipa do MNE, que incluiu o antigo assessor diplomático de Guterres, o Embaixador José Freitas Ferraz; mas também, e de um modo crucial, pela Missão Permanente de Portugal junto da ONU, liderada pelo Embaixador Álvaro Mendonça e Moura).
Vitórias folgadas em todas as seis votações no Conselho de Segurança, chegando a votação decisiva, merecedor de um consenso inequívoco e raro: nenhum dos quinze membros do CS desencorajou o nome de António Guterres. Resta agora a formalidade da votação em Assembleia-geral, provavelmente dia 13. Não há memória da AG da ONU ter alguma vez rejeitado a indicação do CS. Será novamente aclamado, muito certamente.
Guterres é a pessoa certa no lugar certo, uma vez que se trata de uma função especialmente talhada para a negociação multilateral, algo que assenta que nem uma luva ao antigo primeiro-ministro de Portugal. Há muito.
Quando presidiu ao Conselho Europeu no primeiro semestre de 2000, foi reconhecido pelos outros líderes de estados-membros da UE como a pessoa que conseguia desbloquear situações de impasse e obter compromissos, o que dava uma grande força a Portugal.
A capacidade de diálogo é uma característica inata do sucessor de Ban Ki-Moon. Diz quem com ele trabalhou que o facto de nunca ver o adversário como inimigo e de ser uma pessoa que sabe criticar sem ofender são qualidades inatas e essenciais para uma função muito baseada na negociação multilateral, na capacidade de articular e aproximar as diferentes partes em conflito.
A tarefa é gigantesca: desde as crises internacionais (da Síria – com tantas responsabilidades de alguns membros permanentes do Conselho de Segurança – à Ucrânia, passando pelo Iémen, ao Iraque e Afeganistão, ao conflito israelo-árabe, à Líbia e outros pontos do continente africano), à crise de refugiados e às alterações climáticas, às necessidades de financiamento da própria ONU, sem esquecer a urgência de reforço da credibilidade das missões humanitárias e de manutenção da paz.
Mas, qual administrador de um complicado condomínio, onde alguns pagam muito e outros só arranjam problemas, também vai cair nos braços do novo secretário-geral a tarefa de reforçar os mecanismos internos de “accountability” da Organização, o reforço dos seus procedimentos de transparência e de protecção daqueles (conhecidos por “whistleblowers”) que têm ousado denunciar práticas que não se coadunam (corrupção, conflitos de interesses, abuso de poder) com a Carta e com os valores das Nações Unidas.
Há no mundo hoje muitos milhões, para além dos portugueses que carregam no ADN identitário um fatalismo fadista que passa rapidamente a uma euforia nacionalista, à espera que António Guterres continue a ser a pessoa capaz de fazer dos impossíveis um possível mundo melhor, mais justo, mais solidário, com um renovado papel conciliador das Nações Unidas.
Portugal em si mesmo não vai ser diferente para melhor porque o Secretário-Geral da ONU é português. Não consta que isso tenha acontecido à Áustria, ao Perú, ao Egito, ao Gana ou à Coreia do Sul. Mas a qualidade de Guterres e o trabalho que se espera que desenvolva podem fazer do mundo um sítio melhor. E, com isso, com o trabalho deste “português excepcional” nas palavras do presidente da República, o país, também este país, ganhará.
Daqui a cinco ou dez anos, quando Guterres for substituído no cargo, que seja por uma mulher, do norte ou do sul, do leste ou do oeste. Já será – já é – mais do que tempo.
António Guterres, Photo by European Parliament / CC BY-NC-ND 2.0
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