O conceito de “desenvolvimento sustentável” e a sua dúbia trajectória
Desde a publicação do Relatório Brundtland em 1987 que o termo “desenvolvimento sustentável” tem sido dos slogans mais utilizados por todas as entidades que querem dar uma imagem de estar a par dos “sinais dos tempos”. Por essa mesma razão, o termo acabou por ser banalizado e esvaziado do seu “miolo” conceitual, sendo muitas vezes usado como “palavra mágica” para automaticamente conferir uma aura de legitimidade a projectos cujas motivações e dinâmicas fundamentais colocam em cheque o próprio objectivo de sustentabilidade.
‘O termo “desenvolvimento sustentável” tem sido dos “slogans” mais utilizados por todas as entidades que querem dar uma imagem de estar a par dos “sinais dos tempos”.’
A forma como o conceito de “desenvolvimento sustentável” emergiu e se desenvolveu nas últimas décadas está profundamente enraizado nas dinâmicas de globalização e ajustamento estrutural que sustentam a luta pelo acesso a mercados, por parte do “mundo industrializado”, que se seguiu ao período de descolonização. Tem a sua origem no paradigma de “conservação de recursos naturais”, desenvolvido nos anos 60 pela comunidade internacional como base para o desenvolvimento de planos nacionais para a salvaguarda da vida selvagem em países do continente africano que tinham recentemente ganho a independência. O propósito central era planear a actividade agrícola de forma a ter em conta os limites impostos pelo clima, pela qualidade do solo, pela água disponível e pelas florestas e sua fauna e flora.
Durante os anos 70, deu-se uma mudança de foco da “conservação” de recursos naturais para o “desenvolvimento” ao ter em conta, como objectivo central da gestão de recursos naturais, o assegurar da satisfação de necessidades humanas, além da participação comunitária e do uso de tecnologias adequadas. A “conservação de recursos naturais” deixou de ser vista como um fim em si mesmo para passar a ser um instrumento ao serviço do desenvolvimento económico e social. Os anos 60 e 70 foram também marcados pela publicação dos primeiros estudos que ligavam o modo de produção industrial com as alterações climáticas, tais como as chuvas ácidas e o efeito de estufa. Tais estudos inspiraram a criação do Clube de Roma em 1968, assim como a primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, que teve lugar em Estocolmo em 1970. Não obstante, a ligação explícita entre o modo de produção industrial e as alterações climáticas tendeu a esbater-se nas várias conferências internacionais sobre o tema que tiveram lugar durante a década de 70 e início da de 80. Tal aconteceu a par da emergência do “Consenso de Washington” que marcou os processos de ajustamento estrutural, globalização financeira e abertura de mercados que caracterizaram a época.
O Relatório Brundtland foi resultado de uma série de compromissos entre vários grupos de interesse, com vista a gozar de uma aceitabilidade política a nível global. O objectivo fundamental do relatório foi o de dar directrizes aos países em desenvolvimento sobre como satisfazer as necessidades das suas populações de uma forma que não colocasse em perigo os recursos fundamentais que garantem a continuidade da vida humana no planeta Terra. No entanto, tinha como pressuposto fundamental o de que a erradicação da pobreza e a expansão do acesso a bens sociais só seria possível através de mais crescimento económico, o que só seria possível através de uma exploração mais acentuada dos recursos naturais e de uma maior abertura dos mercados, de forma a estimular o comércio internacional.
A partir da década de 90, foram publicados diversos estudos que mostram os limites que o ecossistema terrestre coloca ao crescimento económico. Publicações como o “Atlas da Pegada Ecológica” (“Ecological Footprint Atlas”) mostram que a capacidade do planeta Terra de sustentar a população humana, tendo em conta níveis correntes de crescimento demográfico e de consumo, tinha sido ultrapassada em cerca de 20% em 1990, tendo atingido cerca de 60% em 2015. Tal deve-se não só à explosão demográfica, ao aquecimento global e à depredação da biodiversidade, mas também à desflorestação, aos crescentes deficits de água potável em várias partes do mundo e ao eminente esgotamento de reservas minerais fundamentais à actividade económica e à manutenção de níveis de bem-estar semelhantes aos dos países industrializados. No entanto, os resultados das grandes conferências das Nações Unidas sobre as alterações climáticas mostram que, não obstante a informação disponível, continuam a existir grandes obstáculos de natureza política à promoção da mudança sistémica necessária à promoção de um modelo de desenvolvimento que seja sustentável, a longo prazo, nas suas vertentes ambientais, económicas e sociais.
O economista britânico David Fleming, na sua obra “The Lean Economy: Vision of Civility for a World in Trouble”, argumentou que o esgotamento dos recursos minerais que sustentam as cadeias de produção e comercialização que constituem a actual economia extractivista, acumulativa, industrial e globalizada criarão incentivos que irão sustentar a vontade política necessária para a promoção de um novo paradigma económico e de desenvolvimento. Apesar desta constatação de que é necessária uma mudança paradigmática, ainda não está claro em que modelo de sociedade tal processo irá desembocar. Poderá ser caracterizado por uma perspectiva de pós-crescimento baseada na democracia participativa e na inclusão social ou, pelo contrário, pela continuação do modelo extractivista e de acumulação, com a sua continuidade garantida por níveis reforçados de exclusão socio-económica e de autoritarismo. A implementação de modelos “eco-autoritários” serviria para conter as pressões oriundas dos necessariamente vastos sectores da sociedade que seriam excluídos do acesso a níveis de conforto material vistos como “dignos” e fundamentais ao pleno desenvolvimento humano. A exclusão social destes sectores seria acompanhada pela sua menorização cívica e provável desumanização.
‘Vale a pena ir para além do discurso de “desenvolvimento sustentável” veiculado pelo “status quo” e dar maior voz a movimentos como o de Transição, de Economia Social Solidária e dos Bens Comuns.’
O modelo de sociedade que irá resultar da necessária transição paradigmática – democrático, participativo e pós-crescimento ou “eco-autoritário” – dependerá em grande parte da configuração de forças políticas que irão emergir nos próximos anos. Vale por isso a pena ir para além do discurso de “desenvolvimento sustentável” veiculado pelo “status quo” e dar maior voz a movimentos como o de Transição, de Economia Social Solidária e dos Bens Comuns. Estes propõem modelos de desenvolvimento pós-crescimento alinhados com os valores democráticos e humanistas que supostamente sustentam as sociedades ocidentais.
O artigo acima está disponível em versão PDF na Revista Plataforma ONGD, nº 13 (Mai/Jun 2017).
Photo by Sergio López Barrera / CC BY 2.0
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