A participação de Portugal na criação das Forças Armadas angolanas: 25º aniversário dos Acordos de Paz de Bicesse
Em meados de junho de 1975, as novas autoridades portuguesas saídas do processo revolucionário do 25 de abril de 1974 tentaram alinhar política e ideologicamente o MPLA, UNITA e a FNLA, de forma a desistirem (ou a adiarem) a realização das eleições legislativas previstas nos Acordos de Alvor (15 de janeiro de 1975) e que considerava a independência de Angola como uma possibilidade político-estratégica para unificar as partes em litígio, e contribuir assim para edificar um sentimento de unidade nacional multipartidária em Angola, pois todos os indícios políticos apostavam para o reacender da guerra civil no país. No início de novembro de 1975, o primeiro-ministro, Almirante Pinheiro de Azevedo, havia ameaçado, segundo o Coronel Glória Ramos, a sua demissão e a do VIº Governo, caso Portugal reconhecesse a independência de Angola, declarada, unilateralmente, apenas por um dos três movimentos de libertação, criando um problema político de difícil resolução (2000, p. 81).
No Conselho da Revolução, em Lisboa, acabaria por prevalecer, entre as diferentes hipóteses estudadas, a que defendia que o Presidente da República declarasse a Independência de Angola, transferindo o poder para o povo angolano, sem reconhecer qualquer Governo ou força política ou partidária (mesmo que provisório), o que viria a acontecer às zero horas do dia 11 de novembro de 1975. Na cerimónia solene de transferência de autoridade, realizada no salão nobre do Palácio do Governo, perante a comunidade internacional, no seu último discurso como Alto-Comissário e Governador-Geral de Angola, o Almirante Leonel Cardoso, em nome do Governo Português, reconhecia, implicitamente, que nenhuma das grandes metas assinadas nos Acordos [de Alvor] iriam ser alcançadas e que cada movimento de libertação tinha as suas próprias forças de natureza militar a serem desenvolvidas e posicionadas numa luta pela posse geoestratégica do terreno e na materialização de um único objetivo, o de se posicionarem para ganhar vantagem política (e militar) que lhe permitisse celebrar a Independência em 11 de novembro de 1975, e assim assumir a dianteira e a liderança do processo independentista e de liderança política, o que veio a caber ao MPLA.
Referia a esse propósito, no dia da transferência de autoridade para as autoridades angolanas, o Alto-Comissário que “(…) a única recriminação que (Portugal) poderá aceitar é a de ter provas de extrema ingenuidade política quando concordou com certas cláusulas do Acordo de Alvor. Daí em diante os acontecimentos foram progressivamente fugindo ao seu controlo, à medida que o conflito se internacionalizava e melhorava rapidamente a qualidade e aumentava a quantidade do material de guerra que entrou em Angola por todos os meios (…) ”, e salientava ainda no seu discurso que “(…) e assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas, com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar. Deixa um país que está na vanguarda dos Estados Africanos, deixa um país de que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se (…) ” (Ribeiro, 2002, p. 389).
Ainda assim, a UNITA seria encorajada pelos americanos (essencialmente, mas não só), nomeadamente pela ação do Presidente Gerald Ford, a continuar a luta pelo poder em Angola, ao mesmo tempo que Henry Kissinger apoiava também indirectamente o movimento de Jonas Savimbi, essencialmente na vertente de apoio logístico e financeira, através da ligação da CIA a Kinshasa (por intermédio de Mobutu Sese Seko), apoiando, também, em simultâneo, Holden Roberto e a sua FNLA, ministrando instrução aos militares restantes do Exército de Libertação Nacional de Angola (ELNA), na região do Bié (Capolo) (Ramos, 2000, pp. 81-85).
Entre 9 e 12 de fevereiro de 1975, Jonas Savimbi iniciou a designada “(…)longa marcha (…) ” no intuito de concentrar forças militares para reorganizar as suas Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA) (do Bié para a região de Menongue) e recebeu os apoios dos EUA através da ação da “Angola Task Force”, que lhe permitiu “(…) ressuscitar e recuperar (…) ” o braço armado da resistência da UNITA. As FALA viriam a ter, nessa altura, cerca de 4000 apoiantes e preparavam-se para serem os principais opositores do MPLA, pois, em fevereiro de 1976, a FNLA deixava de existir como força de combate capaz de realizar operações militares consistentes.
No aspecto militar, o período entre 1975 e 1991 coincidiu com um dos períodos mais conflituosos da região subsariana e de Angola, cerca de dezasseis anos de um conflito interno que teve de quase tudo e que, segundo o Brigadeiro Correia de Barros, do Centro de Estudos Estratégicos de Angola (CEEA), contribuiu para um atraso infra-estrutural que atualmente ainda se procura recuperar e que, apesar de ter criado dois grupos armados robustos (MPLA e UNITA) e com uma boa experiência de guerra, serviu também para multiplicar os diferentes agentes das cooperações técnico-militares, levando a retrocesso no processo de criação das FAA (que viria a ressurgir em outubro de 1991, através da junção das FAPLA e FALA). Politicamente foi mais de uma década, onde as lideranças de Agostinho Neto e, a partir de 10 de setembro de 1979, com José Eduardo dos Santos na liderança do MPLA, e de Jonas Savimbi, por parte da UNITA, e ainda residualmente a FNLA, de Holden Roberto, se iam encontrando (aproximando ou divergindo nos temas políticos) nas cimeiras e encontros parcelares que proliferaram nessa altura, criadas pelos líderes regionais ou por iniciativa própria, com vista a definir os termos da paz para Angola, que tardava contudo em chegar…
Nesse período (1975-1991), assistiram-se a dinâmicas nacionais, regionais e mundiais, em torno da resolução do conflito interno angolano, passando a constar nas agendas regionais e internacionais para a paz, em que o palco onde se haviam desenvolvido as “(…) guerras por procuração (…) ”, segundo o General Loureiro dos Santos, passava agora a ser palco das “(…) guerras das influências (…) ”. Palco em que as ideologias políticas, os interesses pessoais e económicos, a luta pelos recursos naturais, o subdesenvolvimento social e humano da população, bem como outros fatores de natureza social, de fronteiras e até culturais, tribais (raciais) ou religiosos, contribuíam para arrastar a situação de conflito em Angola até aos Acordos de Bicesse. Neste contexto, realizaram-se, neste período, um conjunto de cimeiras (Alvor, Mombaça, Libreville, Nova Iorque, Bicesse e Lusaka, entre outras) e foram assinados (e desrespeitados) um conjunto de memorandos, compromissos ou acordos, que ficou conhecido na História recente de Angola, num período em que mais se comprometeu o diálogo pela voz das armas.
Neste ano (2016) em que se comemoram os 25 anos dos Acordos de Paz de Bicesse, e em que a relação entre Angola e Portugal se intensifica, importa salientar este exemplo de cooperação e principalmente de compromisso, que permitiu a Angola ganhar as condições basilares para ter as Forças Armadas de Angola que hoje possui. Este artigo é um relato, assente em documentos já publicados pelo autor, que retratam e dão a conhecer pormenores deste processo pouco conhecido em Portugal, em Angola e no mundo.
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Photo by Rick Scavetta / CC BY 2.0
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