Estrada sem fim
Existe uma nova tendência para contestar os velhos padrões de organização das sociedades que pode resultar em novos modelos, mas que até agora tem, essencialmente, reativado velhas soluções.
Este verão tem sido dominado pela questão dos combustíveis e do medo de alguns não se poderem fazer à estrada. Muita tinta tem corrido por causa da questão dos combustíveis, da greve dos camionistas de matérias perigosas e pelo medo da escassez que levou ao açambarcamento de combustíveis por parte de muitas pessoas. Mas estas estradas, percorridas por muitos de nós, têm um fim.
Em tempos de mobilidade acelerada, a ideia de paragem ou de permanência torna-se assustadora e quase uma ameaça ao modo de vida contemporâneo. Mas estas estradas têm um fim. Ligam localidades, pessoas, serviços, produtos. E não são mais que isso. Numa sociedade completamente dependente e afeiçoada ao asfalto, a questão dos combustíveis demonstra a fragilidade de uma sociedade dependente desta forma energética. Estas estradas que nos deveriam levar à diversidade, são antes vistas como caminhos para afirmação do nosso modo de vida. Daí que não tenhamos sequer em mente qualquer alternativa, nem em momentos de crise, como este que se vive em Portugal.
A estrada simboliza liberdade. Mover-se é um dos elementos essenciais de emancipação. Depois da industrialização e massiva urbanização, com a concentração dos indivíduos em espaços geograficamente limitados e sujeitos a ritmos mecanizados, as estradas passaram a representar a fuga à ditadura das máquinas, dos horários e dos espaços limitados. Tornaram-se, então, espaços de liberdade e inspiração para a manifestações artísticas. Quantos de nós, não vimos filmes em que os protagonistas percorrem grandes distâncias, em viagem? Ou lemos livros em que as personagens principais empreendem uma viagem por estradas desconhecidas, enfrentando novos desafios a cada passo?
Recentemente, ao rever um dos filmes que se tornou ícone na reflexão sobre a liberdade, voltei a pensar este tema e a sua atualidade. Falo de “Easy Rider”, um filme de 1969 que foi distinguido com o prémio de Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Cannes (Dennis Hopper). Nesse filme, a personagem principal e o seu amigo vão em busca dos Estados Unidos da América, numa viagem sobre o asfalto. Depois de conseguir dinheiro como passagem para o que pensavam ser a sua liberdade, os dois aventureiros descobrem uma América prenhe de contradições. Entre o que restava do movimento hippie e as cidades ainda urbanisticamente organizadas com base na segregação social e racial, as personagens que representam a liberdade são vistas como uma ameaça à paz local.
Não pretendo recontar a narrativa do filme, mas refletir sobre a atualidade do mesmo. Durante o filme, percebemos que não é o desafio às regras estabelecidas que atormenta os residentes das localidades por onde passam, mas o facto de representarem outro modo de vida que não se sujeita ao seu controlo social. A par desta intolerância ao diferente, subsiste uma sensação de impunidade dos que reprovam a liberdade de ser e de viver alheias. O filme termina com a aniquilação dos espíritos livres que ao longo do filme são impunemente eliminados.
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