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A Casa de Oxumarê no centro de um debate que não é sobre religião

O presente texto aborda a questão da implementação de um templo a Òṣùmàrè na cidade de Ọ̀yọ́, a partir dos cânones baianos-candomblecistas, por via da agência do sacerdote Sivanilton Encarnação da Mata, Bàbá Pêcê, a partir de um debate público politizado, construído no centro de uma encruzilhada de ideologias que coloca a agência “branca” como elemento diacrítico do debate.
O Caso em si

A Casa de Oxumarê, terreiro baiano localizado na Avenida Vasco da Gama, em Salvador, é considerado um dos mais relevantes terreiros de Candomblé do país, conquistando uma forte presença em todo o território brasileiro, através de uma bem consolidada estratégia de filiação religiosa que invoca questões de autenticidade e legitimidade enquanto aspetos estruturantes do campo religioso afro-brasileiro [1]. No quadro das suas estratégias de consolidação no mercado religioso, a Casa de Oxumarê tem empreendido várias iniciativas, entre elas as viagens a África e a vinda de sacerdotes africanos ao Brasil.

Presentemente, numa iniciativa conjunta entre a Casa de Oxumarê e instituições culturais ligadas às lideranças políticas da cidade de Ọ̀yọ́, foi acordada a construção de um templo dedicado a Oxumarê naquela cidade africana, segundo os moldes rituais e estéticos baianos do Candomblé. A notícia tem sido acolhida com enorme rejeição no Brasil, particularmente entre as camadas intelectualizadas do Candomblé. O presente texto pretende analisar, sumariamente, as razões dessa rejeição, explicitando um cenário de lutas ideológicas.

A questão presença “branca” nos cultos afro-brasileiros

A história do pensamento ocidental sobre «raça», «determinismo biológico» e «darwinismo social» é calcada, em grande parte, sobre a experiência dos viajantes, missionários e colonos europeus em África. Os relatos desdenhosos de viajantes e missionários acerca das religiões da Costa dos Escravos acompanhou um imaginário cristão que localizou o Inferno na terra naquela geografia, associando os negros a seres queimados pelos seus pecados e, assim, vendo nas suas práticas religiosas uma adoração demoníaca. Enquanto paradigma de «raça» inferior, caberia à África trilhar os caminhos da civilização material europeia. Assim determinava a etnologia europeia de finais do séc. XIX até princípios do séc. XX, embandeirada no «evolucionismo» como ideologia dominante. A este imaginário fantasioso sobre África, juntava-se a fantasia científica da craniometria, com destaque para os estudos de Josiah Clark Nott e George Gliddon, disciplina que associava o formato do crânio negro às práticas criminosas.

No Brasil, palco de longa presença africana, os negros nunca se livraram das amarras da escravidão, do racismo e da segregação, acompanhando situação similar nos Estados-Unidos. A segregação racial foi um problema constante do processo de urbanismo brasileiro [2], onde o Estado, ao abrigo de uma ideologia de branqueamento racial, foi produzindo leis que controlavam as práticas religiosas africanas, primeiro banindo depois contendo através de decretos legais que colocavam o Candomblé sob a alçada da polícia, cuja repressão era, no mínimo, violenta [3].

No meio deste cenário, a luta pela legalidade do Candomblé e congéneres foi feita pelas lideranças dos terreiros, mulheres negras empoderadas que encantaram Ruth Landes e a levaram a escrever A Cidade das Mulheres, mas também homens virtuosos e resistentes. A estes juntaram-se figuras influentes da sociedade brasileira, artistas e intelectuais, em boa parte brancos, que se engajaram na luta negra, não sem adquirirem um papel de destaque. Entre reconhecimento e dependência económica, esses “brancos” tornaram-se parte da paisagem dos terreiros, inseridos num quadro de património cultural africano do qual não eram herdeiros. Muitos desses intelectuais eram pesquisadores, que ao abrigo de suas pesquisas contribuíram para a constituição de novas ideologias. Entre eles destaca-se o sociólogo francês Roger Bastide, grande idealizador da supremacia nagô que deixou uma longa escola. Bastide pegou numa categoria nativa e a transformou em analítica, construindo, a partir daí, um ideal de africano no Brasil, seguindo, nesses termos, o trajeto iniciado por Nina Rodrigues.

Ora, se os pesquisadores foram importantes no garante da autonomia do culto, foram também agentes ativos na produção de uma forma de conceber o Candomblé, cujas implicações se reproduziram até hoje, galopando à medida em que as fronteiras entre pesquisador e membro ativo da comunidade se vão esbatendo, produzindo uma perceção de empoderamento intelectual que outorga legitimidade para influenciar o ortopraxia dos terreiros.

Esta situação encontra-se ligada, particularmente, ao conceito de branquitude. O conceito de branquitude diz respeito a uma situação que evidencia uma dominação racial, produto de uma história já invocada. No caso do Candomblé, a questão da branquitude está intimamente ligada aos questionamentos dos movimentos negros que reivindicam uma menor ou supressão da presença caucasiana nos terreiros de Candomblé, argumentando que os indivíduos “brancos” reproduzem naqueles lugares uma lógica de dominação. Com efeito, a tensão entre brancos e negros não é um fenómeno recente [4], e evidencia diferentes valores estéticos, éticos e culturais. De um modo geral, os brancos possuem poder aquisitivo maior, situação que influencia o decurso normal do seu trajeto religioso, podendo cumprir as suas etapas mais rapidamente e associando o sacerdócio ao poder de adquirir mobiliário para instalação de um terreiro. Esta situação é agudizada com o fenómeno de mudança da Umbanda para o Candomblé, com a continuidade de uma carreira sacerdotal num tempo diferente [5].

Ao mesmo tempo, pela possibilidade aquisitiva, muitos sujeitos ditos “brancos”, vão reivindicando um papel mais central na vida do terreiro, ao pagarem várias despesas festivas, ganhando não apenas poder no terreiro como autoridade para introduzirem mudanças significativas, em particular no domínio estético. A hiperestetização do Candomblé [1], embora não exclusivo, aparece como um fenómeno predominantemente “branco”, associada a questões económicas.

O excesso estético aparece como disruptivo em relação à simplicidade do Candomblé antigo. Não obstante, mesmo da parte dos sujeitos caucasianos, ela é entendida como uma “recuperação” dos princípios régios africanos. Por outro lado, da parte destes sujeitos opera um lamento de que são vistos, por parte das lideranças negras dos terreiros, como fontes de renda, sentindo-se explorados por causa da sua cor.

A “pureza”, a preservação africana e o neocolonialismo no meio do fluxo “branco” em África

Uma das mais fortes críticas ao processo de instalação de um templo a Oxumarê em Ọ̀yọ́ vem assinada por Moisés Lino e Silva, Professor de Antropologia da UFBA, iniciado na Casa de Oxumarê e iniciado em África. Trata-se de um agente “branco”, intelectualmente empoderado. Na sua nota de repúdio, afirma que não foi “consultado sobre a iniciativa da Casa de Oxumarê de se implantar em Oyo”. Argumenta a existência de um desnível de poder na relação entre agentes, ao caso a Casa de Oxumarê e o Aláàfin de Ọ̀yọ́, relembrando que o fluxo atlântico foi historicamente estabelecido num contexto de escravidão. É invocado, ainda, o problema desse acordo ter sido alcançado por representantes “brancos” de ambos os lados. A tais agentes brancos, endereça a crítica:

Os ataques externos à religião dos Orixás na Nigéria são gravíssimos e deles se aproveitam alguns membros da Casa de Oxumarê para poderem introduzir uma nova iniciativa missionária, dessa vez ainda mais perigosa, porque velada e interna ao culto dos Orixás. O refluxo de um candomblé cada vez mais rico e mais branco, que se aproveita da vulnerabilidade do povo africano de Oyo é simplesmente inaceitável e deve ser repudiado.

Esta crítica é acompanhada por várias pessoas no Facebook, em geral por parte de pessoas brancas e que se iniciaram em África. Esta situação configura um paradoxo, porque volta a colocar em destaque a agência caucasiana no decurso das dinâmicas religiosas africanas. Dessa forma, vemos invocada e ressignificada a questão da “pureza” ideológica – ainda que rejeitada – agora em contexto geográfico africano, observando no movimento um processo de neocolonização. Sucede, todavia, que o fluxo “branco” para África não é uma novidade nem de menor expressão. A chamada “reafricanização” é um processo de recomposição ortopráxica afrodiaspórica levada a cabo, na sua larga maioria, por agentes “brancos” [6]. Esse enorme movimento criou um mercado turístico religioso em direção a África.

Ocorre, portanto, uma defesa da preservação dos cultos africanos no seu território por parte de agentes que foram determinantes na construção de uma nova dinâmica, de um novo mercado. Isso é evidente pelo número de contatos diários que recebo, via Facebook, de sacerdotes nigerianos oferecendo os seus serviços religiosos.

A passividade imaginada e o sentido de agregação africano

Com isto, chegamos a uma situação que diz respeito a uma passividade imaginada por parte destes agentes brancos que reclamam estar em defesa das tradições locais. Com efeito, a opção de que o culto a Oxumarê será feito estritamente nos moldes baianos, por sacerdotes de Ṣàngó, e em virtude de já não existirem sacerdotes de Òṣùmàrè na região, é questionável e pouco dialogante, motivando uma interpretação neocolonialista do processo. Não obstante, três aspetos são desconsiderados: a autonomia decisória por parte do Aláàfin de Ọ̀yọ́, interpretado como um sujeito passivo – o que configura uma recuperação de teorias racistas e um forte paternalismo –; a dimensão política da iniciativa, que permite reforçar o eixo atlântico numa altura em que há um trânsito intenso e uma quebra de culturadores de Òrìṣà no território africano; a caraterística inerentemente africana de agregação de cultos.

A agregação como fator essencial

Os sistemas africanos de cultos Òrìṣà e Vodun sempre foram espaços marcados por duas características: a plasticidade e o caráter civil-político [7]. De formas distintas, mas claras, ambos os sistemas – desdobrados em dinamismos próprios – tiveram o condão de se perpetuar e reproduzir por via da adaptação e agregação de elementos exógenos. Essa plasticidade tão invocada nos estudos sobre as religiões afro-diaspóricas como um produto próprio do êxodo, é, no entanto, uma marca identitária fundacional que se liga, invariavelmente à dimensão civil-política da religião. Com efeito, esta dimensão política da religião não é sinónima de «poder», pelo menos nos sentidos de dominação e hierarquização das práticas e valores culturais. De contrário, ela liga-se tanto à sacralização das autoridades públicas e políticas [8] quanto ao reconhecimento do poder e eficácia dos ‘seres religiosos’ dos povos conquistados. Ora, inversamente ao modelo de propagação da fé cristã e islâmica, o modelo da Costa dos Escravos era o de valorização e agregação dos ‘seres religiosos’ locais, mantendo a paz social possível e integrando tais Òrìṣà e Vodun nos seus sistemas de culto [9].

Ao mesmo tempo, o comércio atlântico, quer de escravos quer de produtos, foi determinante na constituição e reconfiguração de novos e velhos sistemas de culto, com uma intensa circulação de saberes e objetos rituais [10], como as “contas do comércio” – as missangas de vidro italiano – e a valorização de elementos marítimos em cultos de prosperidade [11].

Conclusão

Ora, se a capacidade de agregação foi e é uma caraterística do pensamento africano – não apenas na Costa dos Escravos – esta introdução do culto de Oxumarê em Ọ̀yọ́ não deveria constitui qualquer problema. Todavia, ela invoca o longo trauma da escravidão, do colonialismo e, assim, da branquitude como processo de dominação racial. Essa situação agudiza-se pela intervenção de atores “brancos” no processo, tanto de um lado como de outro. Não obstante, a branquitude está presente nas críticas e na defesa dos atavismos locais africanos, uma vez que espelha tanto uma intelectualização dos atores brancos como desnuda o mercado religioso que eles geraram na marcha da reafricanização.

[1] ver João Ferreira Dias, “A África é aqui, no terreiro”: Horizontes nostálgicos, sentidos da África e outros lugares no Candomblé (jeje-nagô) de Salvador e Uberaba.

[2] ver Nem para todos é a cidade, de Maria Nilza da Silva.

[3] ver, por exemplo, Angela Lühning, “"Acabe com esse santo, Pedrito vem aí..." - Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano”.

[4] ver Vágner Gonçalves da Silva e Rita Amaral, “A cor do axé - negros e brancos no candomblé de São Paulo”.

[5] ver Stefania Capone, A busca da África no Candomblé.

[6] ver, por exemplo, “A voz dos fiéis no Candomblé reafricanizado de São Paulo”, de Aislan Vieira de Melo.

[7] ver, por exemplo, o artigo de Jacob Olupona, “Religious Pluralism and Civil Religion in Africa” e o seu capítulo de livro “Orisa Osun: Yoruba sacred kingship and civil religion in Osogbo, Nigeria”.

[8] a título de exemplo, ver "The study of Yoruba religious tradition in historical perspective”, de Jacob Olupona, “Yoruba Sacred Kingship and Civil Religion in Osogbo” do mesmo autor, e "Sacred kingship and government among the Yoruba” de Peter Lloyd.

[9] ver a excelente descrição feita por Parés em O rei, o pai e a morte: a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental e a análise de Olabiyi em “From Vodun to Mawu: monotheism and history in the Fon cultural area”.

[10] ver, a título de exemplo, o capítulo de Lisa Earl Castillo “Entre Memória, Mito e História: Viajantes Transatlânticos da Casa Branca”, e o artigo de Carlos da Silva Jr. “Interações Atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa Da Mina) no século XVIII”.

[11] ver James L. Matory The Fetish Revisited.
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As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.

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João Ferreira Dias

Researcher at CEI-IUL. PhD in African Studies (ISCTE-IUL) about politics of memory, and cultural loss in the terreiros de Candomblé. Research interests: religious memory, nostalgic sentiments and cultural loss, the orthopraxy and thought patterns in jeje-nagô Candomblé, and the Yorùbá construction and religious and ethnic identity.