Pensar a tradição a partir dos 100 anos do Terreiro Bate Folha
A literatura afro-brasileira dedicada ao Candomblé
A literatura afro-brasileira dedicada ao Candomblé cristalizou a classificação dos terreiros em “puros” e “degenerados”, numa hierarquia rígida que não se despiu quer da história das relações entre pesquisadores e terreiros quer da histórico de pesquisas iniciadas no afamado terreiro do Gantois por Nina Rodrigues, na viragem do século XIX para o século XX. Das ‘sobrevivências culturais’ de Herkovits à ‘supremacia nagô’ de Bastide, o trajeto foi sendo feito, e autores como Edison Carneiro, Ruth Landes ou Juana Elbein dos Santos preservaram e amplificaram tal teoria. Olhando a obra de Landes, A Cidade das Mulheres, somos convidados a beber das narrativas da época relativas quer às “mães caboclas” quer aos candomblés bantos e de homossexuais.
No entanto, no centenário do terreiro Bate Folhas, Manso Bandunquenqué, vale a pena refletir sobre as andanças da tradição. No clássico The Invention of Tradition, E. Hobsbawm e T. Ranger oferecem a noção de que as tradições são invenções que visam estabelecer um ideal de continuidade face a um passado referencial. Triaud, anos mais tarde, dá um importante contributo ao teorizar sobre as «memórias instituídas» como ato de poder de um determinado grupo humano. São noções importantes quando olhamos o campo religioso candomblecista, locus onde tais pressupostos se implementaram.
100 anos de Terreiro Bate Folha: O que mudou?
Ao completar 100 anos, o Terreiro Bate Folha inscreve-se no círculo dos terreiros históricos baianos e brasileiros, depois de ter sido classificado como património (tombado) em 2003. Trata-se de um dos maiores terreiros da Bahia, com 15 hectares, com uma história riquíssima, e considerado na comunidade candomblecista atual como um dos mais tradicionais templos de Candomblé do Brasil.
A pergunta que ocorre é: então, o que mudou? Vários factos essenciais da identidade do terreiro concorreriam, à época de Landes ou Bastide, para inscrever o Bate Folha como não-puro, como degenerado. Em primeiro lugar a nação da casa. O Candomblé Angola era considerado degenerado, a partir das teorias raciais desenvolvidas por Nina Rodrigues, com base no quadro científico anglo-saxónico e francófono da época. Em segundo lugar, o terreiro fundado por Manoel Bernardino da Paixão, em 1916, é uma casa patriarcal, facto que contradizia a narrativa de Landes — elaborada a partir dos casos do Gantois e Engenho Velho — de que o Candomblé se constitui espaço de sacerdócio exclusivamente feminino. Em terceiro lugar, era um terreiro recentemente fundado.
O facto do terreiro do Bate Folha ser correntemente reconhecido como um espaço tradicional de Candomblé, revela-nos que a tradição não apenas se constrói em determinado momento em função de interesses determinados, como esta é, ainda, negociada e mutável. Nesse sentido, a tradição não é apenas um ideal que pretende fixar um conjunto de normas e valores, mas também um indicador que se politiza e reconfigura historicamente. Hoje não é mais possível pensar o Candomblé Angola como degenerado em função de um nagôcentrismo, porquanto a comunidade candomblecista reconhece legitimidade e autenticidade a esta variação do Candomblé. Só falta que a academia seja capaz de abandonar o longo curso da nagôcracia e expandir os seus horizontes. Parte do trajeto já vem sendo feito, há que lhe dar continuidade.
Candomblé de Angola. Photo by Terreiro do Bate Folha Salvador / CC BY-SA 4.0
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