A Inevitabilidade do Multiculturalismo Alemão: Uma Perspectiva Histórica
Em 2010 a Chanceler alemã Angela Merkel afirmou que o multiculturalismo alemão tinha falhado, mas em 2015 abdicou do protocolo de Dublin para abrir as portas aos refugiados, no meio de uma crise sem precedentes. Será o multiculturalismo alemão novo fenómeno, decorrente de vagas de imigração em décadas recentes? Qual a génese deste fenómeno?
Da Germânia à Idade Média
O multiculturalismo esteve sempre presente no território que é hoje a Alemanha. Um exemplo é a época em que a região, enquanto território separado da República Romana, foi designada de Germânia por Júlio César (séculos I AC – I AD), considerando a miríade de povos germânicos (alamanos, francos, sénones, suevos, teutões, longobardos, saxões, etc.) ou apenas os ‘alamanos’ do século VI (alamanos e suevos).
Embora os povos bárbaros dos séculos II a V não se organizassem em torno de identidades internas e esta taxonomia identitária fosse exógena (dependendo sobretudo de quem os classificava), a partir do século VI verifica-se uma necessidade endógena de formar uma (meta)identidade comum, sob a designação de Alamanni, que podemos identificar, porventura, como a primeira tentativa de estabelecimento de uma ‘identidade nacional alemã.’
Durante o Império Carolíngio, a unidade identitária era imposta de cima para baixo, a partir do poder central, sobretudo através da conversão forçada dos autóctones ao Cristianismo. A diversidade étnica e cultural desta região incluía francos, saxões, bávaros, longobardos, ávaros, eslavos, etc. A supressão do multiculturalismo através da religião cristã enquanto elemento unificador mantém-se durante o período do Sacro Império Romano-Germânico.
Do humanismo Alemão ao Império de Bismark
No seguimento do período humanista alemão, as guerras civis dos séculos XVI e XVII entre Católicos e Protestantes, que ditaram o início do fim do Império Romano-Germânico, traduziram-se num esforço de tornar o território partidário de uma doutrina especificamente alemã (luteranismo) e dotado de uma língua estável (a partir da tradução da Bíblia para alemão), e foram acompanhadas por um nascente sentimento nacionalista de pretensões seculares que a descoberta da Germânia de Tácito tinha começado a inflamar no século anterior.
A Paz de Vestefália de 1648, que pôs um fim aos conflitos religiosos na Europa, pouco fez para alterar a realidade multicultural deste território. Na sequência dos eventos que se desenrolaram entre a Revolução Francesa (1789-99) e a dissolução do Sacro Império Romano-Germânico (1806), o Congresso de Viena (1814-15) estabeleceu a Confederação Alemã, que compreendia várias nações distintas, reinos, ducados, e cidades livres, cujo governo autoritário se cingia às elites, e era, consequentemente, multicultural e, sobretudo, multinacional. Esta situação resultou, em 1848, numa série de revoltas que se opunham a este sistema; no entanto, foi apenas com Bismark, em 1871, que a unificação alemã se veio a concretizar à custa de guerras e de um poder económico emergente.
O Império Alemão de Bismark pode ser visto como mais uma forma de unificação territorial a partir do poder central, apesar de alguns anseios nacionalistas dos povos de língua alemã. Apenas por altura da Grande Guerra é que há evidências de um verdadeiro nacionalismo alemão, mas a semente foi, certamente, lançada na época de Bismark, com a emergência do movimento Völkish e com o início da distinção fenotípica humana. O trabalho científico de figuras desta época, como Rudolf Virchow, qual Tácito, serviu inadvertidamente de justificação para as atrocidades que o Nacional Socialismo alemão do pós-guerra viria a causar no século seguinte.
Do Nacional-Socialismo à Guerra Fria
O nacionalismo extremo vigente depois da Grande Guerra veio exacerbar o padrão histórico da oposição à ideia de um multiculturalismo alemão, e veio dar particular atenção não só a uma preocupação de criar (com pretensões científicas) uma taxonomia fenotípica humana, mas também a uma preconização activa de métodos eugénicos (e decorrente preservação da ‘pureza’ resultante). Embora incontornável, este foi um período sem precedentes.
Após a II Guerra Mundial que pôs fim ao Terceiro Reich, a Alemanha foi dividida em duas partes, a República Federal da Alemanha (RFA) a ocidente, sob a égide da Aliança Atlântica, e a República Democrática Alemã (RDA) a oriente, parte integrante do Pacto de Varsóvia. Esta situação veio enfatizar diferenças culturais endógenas pré-existentes e permitiu a integração e marginalização de determinadas minorias étnicas conforme as agendas e conveniência dos respectivos governos.
Estes processos de inclusão e ostracização de minorias (exógenas) eram visíveis na RFA, onde comunidades de imigrantes – e.g. Espanhóis, Iranianos e Croatas – e o governo interagiam de acordo com os seus interesses e agendas, sendo que o factor determinante era a atitude para com a ‘outra metade’ da Alemanha. A posição destas comunidades em relação à RDA e ao comunismo – derivada, em grande parte, do efeito da Guerra Fria nos seus próprios países de origem – tinha um impacto directo no modo como o governo e a sociedade de acolhimento da RFA as percepcionavam.
Uma situação análoga passava-se na RDA. Considerando duas minorias (endógenas) presentes na Alemanha na época da Guerra Fria – os judeus e os sorábios (um grupo étnico de origem eslava) – é possível observar que as políticas culturais (de integração) da RDA direccionadas a cada uma destas minorias divergiam conforme era útil ao governo apoiar uma ou outra. Tradicionalmente o Partido Comunista tendia a ignorar ou marginalizar os judeus e, devido à natureza da sua orientação política e identificação com o Leste socialista, enfatizar a importância cultural do folclore sorábio. No entanto, já na última década da Guerra Fria, devido a pressões externas, houve uma inversão desta política em detrimento dos sorábios, que passaram a ser vistos com desconfiança, e em prol dos judeus, que permitiam uma maior identificação da RDA com o seu passado ocidental.
Uma Alemanha inevitavelmente multicultural no mundo actual
Duas décadas depois da reunificação alemã, é possível observar-se que a Alemanha representa um Estado cuja população autóctone parece (finalmente) corresponder a uma nação alemã. Desde o final da Segunda Guerra Mundial que a Alemanha apregoa a ideia de um multiculturalismo no seio do seu território (ainda que esta ideia varie de acordo com a sua agenda política), procurando (aos olhos do mundo) não só inserir os migrantes que nela procuram uma vida melhor, como também, em certas ocasiões, convidá-los a viver e trabalhar no seu território.
Não obstante, a Chanceler alemã Angela Merkel afirmou publicamente que o multiculturalismo alemão falhou, para depois, em 2015, abrir as portas aos refugiados, e, de seguida, voltar a reduzir a entrada de requerentes de asilo, alegadamente por motivos de segurança, mas também políticos.
A conclusão a que chego é que a história da Alemanha a torna inevitavelmente multicultural, ainda que movimentos políticos extremistas o neguem, e as circunstâncias da presente crise de refugiados levem os povos alemães a unir-se novamente numa meta-identidade, estabelecida, de certa forma, com base numa oposição ao ‘outro’ que vem de fora. O conceito ‘multiculturalismo’ no contexto alemão do século XXI não se cinge, portanto, a um significado apenas, adquirindo contornos políticos e sociais decorrentes da conjuntura em que se encontra o país.
Germaniae veteris typus (Old Germany.) Edited by Willem and Joan Blaeu, 1645, based on information from Tacitus and Pliny. Public domain
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