Assédio Político e Abstenção

A definição de assédio contempla os atos indesejados praticados perante outrem, “com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”, nos termos da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. Esta definição tem sido importante nos contextos do assédio moral e sexual. No entanto, enquanto ato de perturbação, hostil e de coação, o assédio pode ir além dos contextos sexuais e morais. Nesse sentido, o que proponho é observar a campanha eleitoral como um ato de assédio, sugerindo a adoção do conceito de «assédio político». Nessa ótica, o assédio político corresponderia ao ato de coagir, de forma intensa e individual, pessoas singulares, na sua qualidade de eleitores, durante atos coletivos de campanha, designados por “arruadas”. O assédio político distinguir-se-ia, nessa medida, da campanha eleitoral, pelo grau de intensidade e abordagem individual aos eleitores. Quando observadas as dinâmicas das “arruadas”, é possível constatar, in loco ou por meio da televisão, a existência de abordagens individuais que visam a intensa captura do voto, nas quais os agentes políticos fazem uso-fruto da circunstância de popularidade, da presença de jornalistas e da oferta de material de merchandising.

Assédio e Abstenção: uma possível correlação?

Pedro Magalhães [1], a partir do estudo das eleições legislativas portuguesas de 1999, defende que “(…) a abstenção é fundamentalmente determinada pela idade e pelo grau de isolamento familiar e, indirectamente, pelo estatuto sócio-económico (…)”, adiantando uma conclusão que hoje pertence ao domínio comum da realidade política nacional:

o seu declínio sugere que a chave para a compreensão do fenómeno da abstenção em Portugal poderá estar em mudança nas atitudes políticas que atravessam estratos sociais, económicos e educacionais: o desalinhamento partidário e a diminuição da confiança em relação ao sistema político.

Ora, a desconfiança política — que reconhecemos contribuir para a emergência dos movimentos populistas e de candidatos anti-establishment [2] — é, certamente, alimentada pelo distanciamento entre atores políticos e sociedade civil durante o período regular de exercício de cargos políticos. Por outras palavras, a desconfiança alimenta-se da consciência de que somente em período de campanha, i.e., quando os atores políticos regressam ao papel de candidatos, é recuperada a ação junto do eleitorado, não através de iniciativas de diálogo, mas por meio de ações de massas que visam a captura do maior número de votos possível. Ora, é nessa dinâmica de ação consertada que surge o conceito de assédio político, uma vez que há uma consciência generalizada, por parte dos eleitores, de que tais ações visam, exclusivamente, garantir o voto, despindo o cidadão do seu capital intelectual e politicamente relevante, e observando-o, meramente, como um «voto».

Nesses termos, em que a ação dos atores políticos na captura do voto é percecionada pelo eleitorado como um ato de arrastamento do voto, no qual as circunstâncias das comunidades locais não são consideradas, tendo uma evidente demarcação no tempo, correspondendo aos períodos eleitorais, é possível relacionar tal assédio à produção de desconfiança e, assim, ao efeito eleitoral de abstenção. As “arruadas”, enquanto verdadeiro ato de “arrastão” do voto, bem demarcadas no tempo, e sem reprodução de proximidades em períodos de regular funcionamento das instituições, produzem, portanto, um efeito contrário ao desejado: o aumento da perceção do “nós” e “eles”, que permite o posicionamento de atores que se apresentam a si mesmos como antissistémicos e que minam a saúde da Democracia.

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[1] MAGALHÃES, Pedro C., 2001, "Desigualdade, desinteresse e desconfiança: a abstenção nas eleições legislativas de 1999", Análise Social, XXXV (157), pp. 1079-1093.

[2] ZÚQUETE, José Pedro, 2016, "Era uma vez o populismo….", Relações Internacionais, (50), pp.11-22.

Foto de Senado Federal / CC BY 2.0

As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.

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João Ferreira Dias

Researcher at CEI-IUL. PhD in African Studies (ISCTE-IUL) about politics of memory, and cultural loss in the terreiros de Candomblé. Research interests: religious memory, nostalgic sentiments and cultural loss, the orthopraxy and thought patterns in jeje-nagô Candomblé, and the Yorùbá construction and religious and ethnic identity.

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