A Europa, Portugal e a crise catalã
A Europa, Portugal e a Crise Catalã
A crise catalã é a mais séria que atravessa a democracia espanhola desde o golpe de 21 Fevereiro 1981. Como resultado da declaração unilateral da independência pela maioria do Parlament catalão, o Senado espanhol aprovou por ampla maioria a destituição do governo da Generalitat e a convocação de novas eleições regionais para 21 Dezembro 2017. O líder da autoproclamada Catalunha independente, Carles Puigdemont, escapou para Bruxelas parecendo entregar o futuro da República Catalã nas mãos do Reino dos Belgas. Outros membros do governo catalão demitido foram detidos por uma juíza em Madrid. O que podemos retirar de tudo isto? Pois sendo esta legalmente uma questão interna de Espanha, politicamente interessa muito para o futuro da Europa e de Portugal.
A Europa não está silenciosa sobre a questão catalão.
Os principais dirigentes e os principais países membros da União Europeia têm falado sobre a questão catalã, não estão é a dizer aquilo que os independentistas catalães queriam ouvir. Apelaram consistentemente a que não se avançasse para uma declaração unilateral de independência e para que se dialogue e evite um confronto. Esperar o contrário é que fazia pouco sentido. Aparentemente a “diplomacia” catalã achou que podia usar o seu inegável sucesso mediático para forçar os governos europeus a dar-lhe apoio contra Madrid. Enganou-se. A opinião pública europeia não tem suficiente interesse pelo tema, e os governos europeus têm um enorme interesse em evitar uma nova crise na UE.
E não é só porque ao contrário do que dizem os nacionalismos populistas a UE é um clube de integração e não de desintegração de estados. É também porque a UE assenta na negociação e no império da lei, na recusa do unilateralismo. Só assim é possível o funcionamento pacífico de uma união de 27 países. Ora, os independentistas catalães ignoraram a lei espanhola, a lei de autonomia catalã (como os próprios juristas do Parlament alertaram) e a oposição de metade da população ao avançaram com a declaração unilateral independência.
Os nacionalistas catalães fizeram tudo para os Estados e as instituições da UE não os poderem apoiarem. Ignoram os apelos dos líderes europeus ao avançarem com uma declaração unilateral de independência que não tem claro apoio majoritário na Catalunha, para não falar em Espanha. Mostraram que estão dispostos a recorrer a um referendo sem recenseamento, sem escrutínio, sem garantias, e em que os próprios independentistas reconhecem que tiveram o apoio de menos de metade do eleitorado catalão.
Tudo isto significa que um eventual estado catalão independente é visto como um perigoso precedente de uma fragmentação caótica dos Estados europeus que tornaria a UE ingovernável. Uma eventual Catalunha independente é também vista como uma potencial nova Hungria ou Polónia, com governos dominados pelo nacionalismo populista que não respeitam o Estado de direito, não respeitam a oposição, não procuram consensos negociados e não são parceiros de fiar na UE. Que outra conclusão tirar quando os independentistas catalães estão dispostos a abrir uma nova crise contrariando todos os apelos dos líderes europeus, numa altura em que a Europa estava finalmente a recuperar da Grande Recessão?
Poderiam, ainda assim, os líderes europeus fazer mais? Em público dificilmente podem ir além dos apelos que têm feito ao diálogo, ao bom senso e à moderação. Em privado talvez, mas convém recordar que nenhum mediador pode alcançar resultados se não for aceite por ambas as partes, e se não houver vontade das partes em alcançar um acordo.
Portugal não deve ser indiferente à questão catalã.
O que não significa que uma questão tão séria deva de ser vista como um jogo Barcelona/Madrid em que se tem de tomar partido por uma das equipas. E se os cidadãos portugueses têm o direito de adotar as posições que entenderem. O governo português tem a obrigação de ser prudente. Portugal não pode nem deve ser ignorar o que se passa do lado de lá da sua única fronteira terrestre. Há hoje uma enorme interdependência económica entre os dois países peninsulares. A Espanha é nosso principal parceiro comercial. O que significa que o custo económico da crise catalã – estimado numa redução de 0,5% do crescimento no país vizinho – será potencialmente pago em parte do lado de cá da fronteira.
Portugal também, além disso, um interesse vital em evitar a fragmentação da UE, e o nacionalismo identitário intransigente é uma ameaça existencial para a UE.
Portanto, por estas duas razões Portugal não tem interesse na independência unilateral e conflituosa da Catalunha, nem no arrastar do confronto. Tem razões de peso para desejar uma solução rápida e negociada. Infelizmente ela parece improvável. Por outro lado, seja o que for que se passe com a Catalunha no futuro, a Espanha continuará a ser o nosso único vizinho. A isto ainda acresce que o atual governo português tem promovido um bloco dos sete países da Europa Sul para procurar reequilibrar a agenda da UE num sentido que lhe seja mais favorável. Esta iniciativa fica enfraquecida com uma Espanha enfraquecida.
Por tudo isto, a posição do Presidente da República e do Governo de Portugal no sentido de defender a integridade de Espanha e o diálogo no quadro da constituição espanhola era a única possível. Qualquer outra postura criaria um conflito sério com Madrid sem alcançar nada para a Catalunha. Portugal até demorou em pronunciar-se e foi mais contido nesse apoio a Madrid do que, por exemplo, a França, o outro vizinho de Espanha.
Quem considere que esta é uma visão demasiado pragmática, que coloca o interesse nacional português à frente de uma discussão de princípio, convém recordar que o nacionalismo independentista catalão não hesitou em colocar o que considera ser o interesse nacional da Catalunha acima de qualquer preocupação com o impacto das suas ações nos seus vizinhos europeus.
A autodeterminação é óptima em princípio, complicada na prática.
O princípio fundamental por detrás da crise catalã é o da autodeterminação, central na política internacional do século XX. Mas sendo difícil de contestar o direito à auto-derminação em princípio, é muito difícil de concretizar na prática. O povo tem direito a escolher a sua forma de governo? Sim, mas quem decide quem é o povo? Porque é que “nós” temos de ser um povo minoritário no teu estado em vez de criarmos o nosso próprio? Em resposta importa sublinhar que nada impede estados plurinacionais, a convivência pacífica de múltiplas identidades. São os nacionalismos identitários exclusivistas que negam essa possibilidade e exigem escolhas. Não se pode ser bom catalão e bom espanhol, nisso os extremos deste confronto parecem estar de acordo. Mas aparentemente há muitos catalães que querem ser ambas as coisas.
Neste contexto importa recordar que as partições têm sempre custos. O caso da Índia e Paquistão, ou da Palestina e Israel, dois casos resultantes da partição sangrenta do império britânico em 1947 ilustram bem como estas tendem a ter um custo elevado não só em dinheiro mas também em sangue, e frequentes vezes levam a choques violentos e longe de encerrar conflitos acabam por os eternizar. As exceções foram aquelas em que havia clara maioria dos dois lados a favor do divórcio amigável como a Noruega e Suécia no início do século XX e a Eslováquia e República Checa no final do século XX. Mas estas exceções são raras, e a recente partição do Sudão em dois estados veio relembrar mais uma vez os custos frequentes deste tipo de separação.
Ora, como previu em tempos Artur Mas, anterior chefe do governo catalão e líder do partido de Puigdemont, um referendo pela independência dividiria a sociedade catalã em dois. As sondagens mostram de forma persistente três grupos importantes na Catalunha: um identificado apenas com a Espanha; outro identificado apenas com a Catalunha; e outro que se identifica com a Espanha e a Catalunha. Mesmo com oscilações o apoio à independência nunca esteve acima de 51% e geralmente tem sido menor do que isso. Veremos o impacto no apoio popular à independência da presente crise, mas parece improvável que venha a aumentar dramaticamente os apoiantes da independência. Pode-se caminhar para um novo impasse eleitoral na Catalunha em Dezembro de 2017.
Qual seria a alternativa? É fácil perceber a atração de um nou país, projetando numa nova Catalunha independente todo o que de melhor há, utopias políticas inclusive de sentido oposto. Mas uma Catalunha independente no contexto atual teria como preço uma relação envenenada com Espanha, ficaria fora da UE com o enorme custo económico que isso implicaria, e a provável alienação de uma percentagem significativa da sua população, cujos os direitos, por exemplo de usa do castelhano como língua materna, passariam a ser bem mais escrutinados. Parece que os próprios independentistas se deram conta tardiamente de algumas destas dificuldades, mas não é claro que conclusões tirarão daí.
As instituições centrais em Madrid também têm cometidos erros na gestão da crise. A repressão do voto improvisado de Outubro, por ilegal que fosse, foi um desastre para a imagem do Estado espanhol. Também outras opções se mostram arriscadas e questionáveis. O PP avançou com o bloqueio de parte novo Estatut de autonomia, em 2010, e obteve o apoio do Tribunal Constitucional espanhol quando estava na oposição, o que provavelmente deu novo impulso aos seus votantes, mas também ao independentismo na Catalunha.
É claro que a decisão de deter os membros do Govern que avançaram com a declaração unilateral da independência não foi do governo de Espanha mas da procuradoria e de um dos tribunais centrais, fartos da sua sistemática desobediência a sucessivas decisões judiciais. Mas como sabemos é perfeitamente possível o poder judicial revelar falta de bom senso. É verdade que políticos presos (ou detidos) não é o mesmo que presos políticos. Mas é demasiado parecido sobretudo quando a acusação é de rebelião.
Felizmente haverá eleições regional antecipadas de 21 Dezembro de 2017? É verdade que parecem ser o mal menor. Podem desarmar a crise. Infelizmente, em sociedades onde domina uma polarização identitária as eleições não é garantido que resolvam o problema, podem prolongá-lo. Veremos.
Apesar de tudo há um ponto positivo, os dois lados neste debate muito polarizada, apesar de adoptarem uma retórica de ruptura, continuam a apelar à ação apenas e só pacífica. O que pode ser uma contradição, mas é uma falta de coerência que merece ser louvada. Faz a diferença em relação a outros conflitos identitários que se tornaram violentos. Porém, incentivar o choque prolongado de mobilizações políticas identitárias com objetivos cada vez mais opostos é brincar com o fogo.
Seria a mediação uma solução? Talvez, mas as condições para ela não existem. Se fosse aberta ou por via de diplomatas de Estados da UE isso seria uma vitória para os independentistas catalães – e aliás não há praticamente nenhuns Estados interessados nesta tarefa ingrata e de sucesso improvável. Mediadores discretos, idealmente estadistas retirados e reconhecidos, preferencialmente do resto da Espanha e da Catalunha, fazem falta, mas mesmo estes parecem muito polarizados. Talvez o Papado, que se empenhou discreta e eficazmente na paz na Colômbia e na aproximação entre Cuba e os EUA fosse a melhor alternativa, como simples facilitador e podendo usar figuras católicas locais (Oriol Junqueras e Mariano Rajoy são supostamente católicos devotos.) Seria importante encontrar quem fosse capaz de negociar um roadmap, uma trajetória que permitisse construir uma ponte aceitável para todos. Mas imaginar que tal será simples, fácil ou rápido seria um excesso de optimismo. É bom que Portugal e a Europa se preparem para uma crise catalã prolongada.
Photo by Tyler Hendy / Public domain
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