Fado, Futebol e Fátima: a Portugalidade mediaticamente construída
Triologia dos três F
O galego Carlos Taibo, no seu livro Compreender Portugal, publicado em 2015, afirma que a sociedade portuguesa, no seu mais amplo sentido, deslocou-se da “trilogia dos três F” – fado, futebol e Fátima, para uma nova trilogia, composta por futebol, FMI e Facebook. Sem negar a importância recente do FMI e o lugar central do Facebook na vida quotidiana dos portugueses (num continuum universal que não produz dimensões particulares portuguesas), considero que os clássicos três F, das guitarras portuguesas, da bola sobre a relva e do culto mariano permanecem profundamente operatórios, enraizados na identidade nacional. Tratam-se de atavismos culturais impressos na memória histórica coletiva. Recordando Júlio Pimentel Pinto, “a memória é esse lugar de refúgio, meio história, meio ficção, universo marginal que permite a manifestação continuamente atualizada do passado”. Nesse sentido, a memória coletiva permite a revivência de determinados eventos, a instituição de determinados acontecimentos como marcos que solidificam a identidade de um grupo. A memória, efetivamente, une os sujeitos, os atores sociais, porque ela interliga-se, beneficia-se das memórias alheias, porque a memória individual só se emaranha na memória coletiva se, como escreveu Halbwachs, concordar com a memória dos outros. Para León e Receba Grinberg a identidade emerge da interseção do tempo, do espaço e do grupo, mecanismos que conjugados produzem um manual de valores que se solidificam no grupo. São tradições inventadas, como teorizou Hobsbawm, que necessitam, na ideia de José Mattoso, do Estado para se criarem, porque a portugalidade é devedora, sem dúvida, do intenso movimento do Estado Novo de estabelecer uma “identidade nacional”, de que os “três F” são o expoente máximo.
Fado, Futebol e Fátima
As romarias com a sua religiosidade assente nos ex-votos, na devoção mariana e nas práticas de cura, o futebol com as suas outras romarias de domingo, em que as famílias iam ao estádio e sempre alguém pedia “vizinho, deixe-me entrar consigo”, na época dos bilhetes com direito a acompanhante, e no fado, a “canção nacional” que transporta o ideal de um povo vivente de tristeza, amargura, devoto e honroso. O português de Jorge Dias é “um misto de sonhador e de homem de acção […] o Português é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco”.
13 de maio de 2017: A mediatização da visita de Francisco, do campeonato de futebol português e do Festival Eurovisão
Mas se o português é uma série de lugares-comuns instituídos na memória coletiva, ele também é muitas outras coisas, porque o quotidiano não se compadece com chavões ideológicos. No entanto, porque a memória se reaviva em acontecimento determinantes, contribuindo para a fabricação de um sentimento comunitário, o 13 de maio de 2017 oferece as condições essenciais para o reavivar da memória nacional, agora amplificada nos meios de comunicação social, com transmissões diárias de notícias e reportagens em torno da vinda do Papa Francisco, publicação de artigos de opinião e livros sobre a vida e a mensagem de Bergoglio. A mediatização da visita papal e a cobertura das peregrinações tem oferecido terreno para um reavivamento católico, para um ressurgimento do catolicismo como idioma cultural nacional, ao qual se junta o facto de no próximo dia 13, o Benfica provavelmente se sagrar campeão, o clube português com o maior número de adeptos, e que opera, assim, como um símbolo instituído de Portugal, conjugando-se a Fátima, reatualizando o mito do país católico e benfiquista, relegando para segundo plano o multiculturalismo, a diversidade religiosa, a diversidade clubística, para renovar, pelo gesto nostálgico, o Portugal do Estado Novo, agora, no dia 13, sem o fado, mas com Salvador Sobral e o Festival Eurovisão.
Santuário de Fátima, Portugal. Photo by Gilles Roy / Public domain
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