Imigração, RSI e Populismo
“Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar”, como escreveu Sophia de Mello Breyner, sobre o impacto da globalização e dos fenómenos migratórios no recrudescimento do populismo de pendor nacionalista um pouco por todo o Ocidente.
Em virtude de vivermos um tempo já comumente descrito como “bipolarizado” – o que traduz a perceção de que o meio-termo enquanto lugar de moderação e interpretação dos fenómenos se esvaziou, tendo-se perdido o princípio da prudência aristotélica de “no meio está a virtude, nos extremos os vícios” –, as posições perante os mais variados temas socialmente fraturantes tendem a ser tomadas na radicalização das posições. E quanto mais se radicaliza menos espaço há para consensos. Efetivamente, nem todos os assuntos são consensualizáveis. É por isso que é perigoso classificar de “abjeto” tanto a castração química como as 35h para a função pública, porque quando tudo é igualmente abjeto, nada o é verdadeiramente. Quer dizer, deixamos de ter um quadro de referência de valores inderrogáveis.
Em Portugal, o rendimento social de inserção e a imigração são temas fraturantes, que às vezes se cruzam, e que impõem que um olhar criterioso não possa ir num sentido ideológico ou no outro. Num quadro de análise próprio das ciências sociais (tão necessárias em tempo de radicalização social, quanto alvo de desinteresse político), precisamos compreender que dois olhares –correspondentes a dois «lugares de fala» –coabitam de costas voltadas.
Isto porque o concreto dos factos e a perceção comum raramente andam juntos. Não raras vezes porque a perceção é apenas a soma de olhares em causa própria. As recentes eleições açorianas são tubo de ensaio sociológico para a compreensão de como RSI, imigração e populismo se encontram. Numa região autónoma com graves problemas de inserção social, desemprego, uma significativa imigração e um forte aparelho administrativo cotado como produtor de empregos-favores, há um caldo sociológico propício para a emergência de fenómenos políticos populistas, como se traduziu nos resultados eleitorais do Chega. A volatilidade e diversidade imigratória açoriana desemboca num fenómeno de crescimento do recurso ao RSI, como escape de sobrevivência.
Tal facto produz um desconforto popular, numa circunstância em nada diferente do restante do território português. Não obstante o contributo da imigração para Segurança Social, num país cada vez mais envelhecido e com problemas de renovação geracional, verifica-se uma perceção de que os imigrantes são alvo de favorecimento em Portugal, de que recebem mais do que contribuem, de que esgotam os recursos da Segurança Social. Esta perceção é, muitas vezes, elaborada em lares de cidadãos de origem que por uma razão ou por outra não conseguem ter acesso ao RSI ou se encontram numa situação laboral e económica precária. Entender este lugar de fala é importante na construção de uma sociedade de segurança e justa. Vozes desconsideradas tendem a acreditar em soluções não democráticas.
Ao mesmo tempo, temos um enorme problema de racismo, xenofobia e misoginia na sociedade portuguesa, camuflada por velhos mitos coloniais e por um patriarcado cristalizado e glorificada durante o Estado Novo, o qual se torna apelativo por parte das franjas sociais “descamisadas” pelo meio da vaga da globalização das últimas duas décadas.
Assim, do outro lado do rio social, não compreender a circunstância dos imigrantes é passar um pano sobre a história portuguesa (pelo menos) do último século. O grosso dos imigrantes em Portugal são-no pelas mesmas razões dos emigrantes portugueses de sucessivas gerações. A incapacidade de aceitar a legitimidade da procura de melhores condições de vida é materializada na narrativa da inadaptação e do crime, quando na verdade o crime e o crime associado à imigração têm números bem diferentes e a realidade é bem mais complexa do que a narrativa.
Uma sociedade que se polariza ideologicamente, buscando soluções políticas radicais e de expressão democrática duvidosa, é uma sociedade que abandonou a ideia de pacto social, que viu as suas instituições serem capturadas por batalhas ideológicas e incapazes de solucionar problemas estruturais, encontrando solução temporária no silenciamento de problemas de diversas ordens. Como sabemos todos: “Quem adormece em democracia, acorda em ditadura”.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.
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