Retalhos da vida europeia

Não deixemos que a memória seja maltratada ou morra. Relembremos o que era a Europa e como é agora e decerto não teremos dúvidas em renegociar o nosso caminho conjunto.

Tomo de empréstimo o título do livro de Fernando Namora, “Retalhos da Vida de um Médico”, que na sua escrita neorrealista narrava a vida de um médico no interior de Portugal. Mas mais do que narrar as circunstâncias de vida do médico, o romance mostrava episódios da vida rural num Portugal empobrecido e violentado pelo analfabetismo e pelo conservadorismo autoritário. Foram tempos difíceis e, felizmente, para a minha geração só os conheci em prosa alheia e em narrativas orais, partilhadas por familiares e amigos. Boa parte das pessoas já se esqueceram desses tempos. A memória é algo que se trabalha, ora assimilando uns factos, ora apagando outros.

Quando oiço pessoas a falarem do “antigamente” como um mar de rosas, lembro-me dos espinhos encontrados naquilo que fui lendo e ouvindo. O passado está aí, não pode ser embelezado nem julgado, apenas não repetido naquilo que teve de negativo. Assim, estranho que se construam audiências em torno de discursos racistas e apologéticos do autoritarismo, escudando-se na perfeição de um passado que nunca viveram nem provavelmente estudaram para saber como era. Mas afinal preferir o passado ao presente pode ser simplesmente uma forma de mudar o presente e de escapar-se à construção do futuro.

Esta constante reconstrução da memória coletiva e individual é comum a muitos países e continentes. Não é uma criação portuguesa.  Olhamos em redor e vemos uma Europa em convulsão, retalhada por velhos sentimentos de saudosismo, de tempos obscuros para a maioria dos europeus. Quantos europeus se lembram da Europa entre as Guerras ou a que se seguiu à Segunda Guerra Mundial? Poucos experienciaram esses tempos de dureza na vida e de constante confrontação pela sobrevivência individual e pela manutenção dos Estados como grandes atores de um mundo em transformação.

Poucos também conseguirão reconhecer essas tendências do passado agora no presente, como, por exemplo, enfrentar os problemas internacionais olhando para as cisões e disputas nacionais e transportando-as para uma eventual oposição entre interno e externo. Os Estados ameaçados pela possibilidade do seu desmoronamento viravam-se para discursos nacionalistas. Aos problemas internos respondia-se com culpados externos. E neste perigoso jogo, as sociedades foram aceitando isolar-se e culpabilizar a ameaça externa. O resultado foi a destruição de muitos países europeus, num longo conflito armado e a perda da hegemonia da Europa enquanto líder mundial.

O final da Segunda Guerra Mundial trouxe a consciência que era necessário procurar consensos e que a Europa não podia continuar a ver-se como a dona do mundo. Na sua sequência veio o início do fim dos impérios coloniais e as consequentes descolonizações, com o retomar da vida dentro das fronteiras europeias. A consequência direta destes dois fatores foi a perceção que havia que partilhar o continente com os vizinhos e, de preferência, colmatar os conflitos que pudessem surgir entre Estados partilhando recursos contíguos. É nesse espírito que é criada a CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que estaria na origem da Comunidade Económica Europeia e que permitiu ao continente europeu viver o seu mais longo período de paz até hoje.

Quase miraculosamente de uma Europa retalhada pela dor e pela morte, surgia uma Europa com esperança, tentando encontrar-se a si própria. O projeto de convergência europeia deu lugar a uma ideia de integração progressiva que ficou expressa na transformação da Comunidade Económica Europeia em Comunidade Europeia que veio a originar a União Europeia. Pensada sempre em modos integrativos e tendo sempre Estados a solicitar tornarem-se membros, esta organização nunca aventou a possibilidade da desintegração.  Assim, todo o seu articulado jurídico foi pensado no sentido da adesão e nunca do abandono ou secessão por parte de um dos membros.

A evolução progressiva e integrativa de uma organização, que, por tratado, assinado voluntariamente pelos Estados, dava origem a outra, gerou a ideia de um consenso permanente no sentido da impossibilidade de um Estado-membro revogar a sua pertença.

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As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.

Foto: Mulheres alemãs lavam roupa em Berlim durante a II Guerra Mundial / domínio público.

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Cátia Miriam Costa

Researcher at CEI-IUL. PhD in Literature (Univ. Évora). Master in African Studies (ISCSP-UTL). Undergraduate studies in International Relations (ISCSP-UTL). Research interests: intercultural relations, colonial and post-colonial studies, international communicaion, discourse analysis. Work experience: Think tanks and Economic and scientific diplomacy.

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