Review | Pensar África: Esta criança não é um ser humano
Teve lugar no passado dia 19 de abril mais um Pensar África – o seminário permanente em Estudos Africanos – organizado pelo CEI-IUL. A oradora, Claudia Favarato, apresentou aquela que foi a sua dissertação de mestrado cujo tema, enquanto doutoranda em Estudos Africanos no ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa), continua a aprofundar.
Com uma audiência maioritariamente feminina este Pensar África abordou as temáticas culturais das crianças feiticeiras, nomeadamente as crianças irã presentes na Guiné-Bissau. Esta República na África Ocidental conta com pouco menos de 2 milhões de habitantes, independente desde 1974, já sofreu algumas tentativas de golpe de Estado que culminaram no Golpe de Estado de 2012 que suspendeu a constituição durante quase dois anos, restabelecida em 2014 sob a presidência de José Mário Vaz.
A Guiné-Bissau é caracterizada por uma diversidade cultural, étnica e religiosa
Segundo os dados da Association of Religion Data Archives, a Guiné-Bissau conta com quase 45% de muçulmanos e mais de 42% de praticantes de religiões étnicas. De entre estas destaca-se o animismo, praticado em larga escala por todo o continente Africano. Esta crença, particularmente na Guiné-Bissau, denomina uma visão do mundo em que as crianças podem ser, durante o parto ou à nascença, possuídas por um espírito. Cláudia Favarato analisou a vida dos Papéis, um grupo étnico que representa cerca de 7% da população. De uma forma muito simplista, podemos definir esta cultura como amorfa e desregulada.
A criança irã, como é chamada, é apenas um corpo sem alma, ocupado por um espírito associado a sentimentos negativos e maldosos. Para se identificar uma criança irã são utilizados estereótipos muito generalistas, como deficiência física ou psicológica, desde atrasos no desenvolvimento cognitivo como microcefalia, ou até gémeos. Todas as crianças nascem com uma alma, mas não existe consenso sobre quando é que a alma chega a um corpo. Os bebés que nasçam sem alma, mas que tenham o espírito no seu corpo são consideradas crianças irã. Este espírito/irã pode ter uma influência positiva ou negativa na vida das pessoas, mas qualquer pacto com o irã exige um pagamento por parte da pessoa ou familiares de quem usufruiu do irã. Para se protegerem do irã as famílias tendem a dar nomes de proteção aos filhos.
Quando em dúvida se uma criança é irã ou tem o irã no seu corpo são realizados testes, também conhecidos como rituais animistas, tais como enviar a criança ao mar num cabaz com oferendas quando a maré sobe, se quando a maré descer a criança regressar viva à costa, então passou o teste e é levada de volta para a comunidade para receber os cuidados da família e não mais é questionado se é uma criança irã ou não. Outro ritual habitual consiste em deixar a criança num lugar recôndito, sem comer e sem amamentação durante alguns dias, se sobreviver é considerada humana e por sua vez, passou o teste.
A investigadora negou ter conhecimento de qualquer criança que tenha sobrevivido aos rituais dos Papéis
Isto leva-nos ao tópico final da sua apresentação: os direitos humanos. Estes factos demonstram casos em que as crianças deixam de ser titulares de dignidade humana e não são cobertas nem protegidas pela lei nem pelo governo pois este desmente a existência deste tipo de práticas. O artigo 27º da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade (…)”, tornando inseparáveis os direitos culturais dos direitos humanos, no entanto, estes rituais que resultam na maioria das vezes na morte da criança não são considerados homicídio. Apesar de terem surgido ações de sensibilização e iniciativas de Organizações Não-Governamentais como a Casa de Acolhimento Bambaran – que recebe crianças vítimas de tráfico, violência, exploração sexual e abandono, onde se encontram crianças irã ou suspeitas de serem irã, indesejadas pelos familiares – uma iniciativa conjunta da Cáritas Guiné-Bissau e da FEC-Fé e Cooperação (ONG portuguesa com uma sede em Bissau), nada é feito em termos legislativos ou governamentais, seja a nível nacional ou internacional. Resta-nos apenas considerar que “esta criança não é um ser humano”.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.
Photo by Claudia Favarato / CC BY-NC-SA 4.0
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