Autenticidades e mercado religioso no Atlântico
O processo Atlântico de transferência de escravos e seus costumes para o Brasil, com enfoque em Salvador da Bahia, mas também para o Maranhão e Rio Grande do Sul, deu origem à ressignificação religiosa através dos sistemas designados por Candomblé, Tambor de Mina e Batuque, respetivamente, instituídos na viragem do séc. XVIII para o séc. XIX. Aportados ao Brasil escravocrata e de matriz cultural católico-português, os escravos viram-se jogados ao desempenho de papéis étnicos (que Parés chama de meta-etnicidades) múltiplos e volutáveis, negociados nas alteridades intra-africanas e dos africanos diante da sociedade escravista.
Estas etnicidades – que surgiram como recurso para a organização das irmandades católicas na Bahia – foram importantes na construção das chamadas «nações de candomblé», tipologias rituais com claros ideais nacionalistas-étnicos africanos. É com estas tipologias que se se iniciam os discursos “de nação”, que viriam a ser convertidos – com determinante contribuição dos pioneiros nos estudos afro-brasileiros – num discurso de pureza, em particular de pureza nagô.
Autenticidade e mercado religioso
Os discursos “de nação” veiculavam, ab initio, um princípio de autenticidade ritual e cultural, diante do avanço da crioulização (hibridismo) dos costumes africanos no Brasil. Estes discursos de autenticidade pré-datam um verdadeiro primado do mercado religioso, mas marcam, decisivamente, as relações entre práticas tomadas como autenticidades e degeneradas.
A abertura do mercado religioso, com a liberdade religiosa e o surgimento da Umbanda, e colocando em cena a expansão do Candomblé, com a multiplicação vertiginosa do número de templos (terreiros) dentro de Salvador, mas também para novas geografias, com destaque para São Paulo, ganhando terreno à Umbanda a partir da década de 1950, reforçou as questões da autenticidade, mas igualmente tornou favorável o processo de hibridismo entre práticas díspares, ao mesmo tempo que colocou o campo religioso afro-brasileiro num intenso processo de concorrência. Nesse sentido, a autenticidade deixou de ser jogada, apenas, numa lógica de perda cultural e reforço “das raízes” (e até pela hierarquia entre templos, a partir do idioma da antiguidade e da posição de destaque – veja-se a relação entre a tríade Engenho Velho – Gantois – Opô Afonjá) na terminologia própria, para adentrar pela concorrência em termos de prestígio e captação de fiéis e clientes.
A reafricanização e as viagens místicas a África
Entre as dinâmicas de expansão do Candomblé produziram crises identitárias ligadas às autenticidades, desta feita a partir das genealogias religiosas. Como mostra a literatura sobre o assunto, a incapacidade dos sacerdotes paulistas em traçarem a sua linhagem religiosa a um terreiro histórico da Bahia, autenticando, desta forma, a sua posição na hierarquia do campo e mercado religiosos, está na origem dos movimentos de reafricanização.
É um facto que a reafricanização é uma questão ab initio do Candomblé, como menciona Capone; no entanto, os novos movimentos de reafricanização, emergentes a partir da década de 1960, introduziram novas formas de reafricanizar os padrões de culto. Entre buscas por sacerdotes de Ifá (sistema religioso do espaço cultural yorùbá, fortemente influenciado pelo islão místico e pelo cristianismo missionário, mas ‘vendido’ no mercado religioso brasileiro como puramente africano) cubanos, ou mais recentemente através de viagens (re)iniciáticas a África, há um caminho de procura por autenticidades que questiona o lugar da Bahia como ‘bolsa de autenticidade’, e que promove uma forte concorrência no mercado religioso.
Uma nova reafricanização ou o reforço do eixo atlântico?
Do lado dos terreiros históricos baianos, a reafricanização recente é compreendida como um fenómeno de rutura com os padrões de autenticidade candomblecistas, porque invoca novas modalidades rituais, estéticas e cosmológicas que confrontam as formas pelas quais os costumes africanos foram reorganizados na Bahia. Esta reafricanização passou a ser concorrente do Candomblé baiano, tornando-se algo rejeitado no seio dos terreiros históricos de Salvador da Bahia.
Todavia, essa rejeição parece ser parcial, porque diz respeito às inovações que coloquem em causa o modus operandi candomblecista. Prova disso são as recentes viagens da Casa de Oxumarê, conceituado terreiro baiano, à Nigéria e ao Benim, e a vinda de prestigiadas figuras políticas e religiosas africanas à Bahia. Esse trânsito atlântico recupera as viagens dos primórdios do Candomblé, em que saberes e produtos eram trocados e reciclados entre a Bahia e o Golfo do Benim.
O que se torna importante objeto de olhar historiográfico e antropológico é o efeito que tais viagens poderão ter em matéria ritual. Teremos uma nova fase de reafricanização, agora com uma recuperação de práticas e de valores estéticos africanos por parte dos terreiros históricos e Salvador, ou somente um reforço ideológico no eixo atlântico? Os títulos sacerdotais conferidos ao sacerdote da Casa de Oxumarê, Babá Pecê, produzirão novas dinâmicas de autenticidade no campo religioso baiano?
Daagbo Vaudou e a autenticidade plástica
A mais recente viagem da comitiva da Casa de Oxumarê a África, durante o mês de Fevereiro passado, foi detalhada em fotografias e vídeos disponíveis na página de Facebook daquele templo. Entre as visitas a diversos sacerdotes locais, foi destacada a visita a Daagbo Vaudou (ou Daagbo Hounon), apelidado de sumo sacerdote vodun do Benim, o qual se encontra, neste momento, em Salvador, reforçando os laços entre os cultos vodun no Benim e na Bahia. Um dos principais leitmotivs desta aproximação encontra-se na afirmação de uma autenticidade ritual vodun presente no Daagbo Vaudou. Somente a autoridade deste sacerdote, e assim a sua autenticidade, permitem que as suas ações político-religiosas produzam efeitos no mercado religioso baiano. No entanto, a procura de autenticidade brasileira em terras Vodun embate nas dinâmicas próprias do campo religioso beninense.
Quando se visita a página no Facebook do sacerdote africano, não é inteligível que se trate de um sacerdote do culto vodun, nos termos tradicionais que o imaginário candomblecista suporia ou formataria. Isto porque o mercado religioso beninense não se articula a partir dos mesmos idiomas que o mercado afro-brasileiro. A referida página anuncia o “gabinete do grande e poderoso marabout Daagbo Vaudou”, destacando-se as divindades hindus como ‘fotografia de capa’. São devidas algumas notas. Em primeiro lugar a ausência de imagens do culto vodun e o grande destaque ao imaginário hindu, numa lógica que se articula profundamente com o movimento New Age no Ocidente, onde a Índia e as suas tradições religiosas possuem grande importância. Em segundo lugar, as ofertas de serviços religiosos são coincidentes com os serviços oferecidos pelos curandeiros e mestres africanos que atuam, por exemplo, em Portugal, como o Professor Karamba ou Mestre Alaji, destacando-se os serviços amorosos/sexuais, os males de inveja e problemas financeiros.* Em terceiro lugar, e articulado com este último aspeto, a elasticidade do termo marabout como sinónimo de sacerdote e de poder religioso, que abandona as fronteiras islâmicas para se apresentar como recurso de mercado religioso, num fenómeno próximo ao termo “mãe de santo” em Portugal.
É, pois, evidente, que as buscas de autenticidade africana por parte de comitivas candomblecistas brasileiras em terras africanas, tem de lidar com o facto de que o Golfo do Benim não é um lugar sem história, imutável. Pelo contrário, o campo religioso local é tão dinâmico quanto qualquer outro, altamente inscrito em processos de mercado concorrencial, ciente dos postulados da Nova Era, e capaz de se articular com demandas do mercado, evidenciando-se como altamente plástico. Da mesma forma que os sacerdotes brasileiros buscam nesta viagem uma ponte atlântica de partilha e proximidade, procurando as autenticidades voduns, do outro lado teremos, muito provavelmente, uma leitura de oportunidade de mercado, reforçando o poder do marabout – Vodunon (sacerdote vodun).
* há um claro continuum de problemas e serviços entre imaginários africanos de cultos vodun, islamizados e ocidental de curandeirismo.
Photo by Candomblé / CC BY-SA 4.0
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