A Missão da União Africana na Somália (AMISOM): Numa encruzilhada entre Fracasso e Sucesso
A AMISOM é uma força militar regional legítima que, desde 2007, vem implementando o mandato de imposição da paz na Somália após a autorização do Conselho de Paz e Segurança da União Africana (AUPSC) e do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas como tentativa de trazer a paz e estabilidade na Somália, considerada por muitos analistas como um dos países mais perigosos e conflituosos do planeta.
O CSNU é o principal órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais.
Este mandato, que deriva da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), permite ao Conselho estabelecer operações de paz com uma série de mandatos, dependendo das nuances de um conflito particular. As operações de manutenção de paz da ONU têm geralmente operado em contextos de cessar-fogo e com o consentimento do Estado anfitrião, aderindo ao mesmo tempo aos princípios de neutralidade, imparcialidade e não uso da força, excepto em autodefesa. Esses pré-requisitos definem a prática das operações de manutenção da paz da ONU, excepto em situações em que o Estado anfitrião seja, por qualquer motivo, incapaz de manter a segurança e a ordem pública, caso em que o Capítulo VII da Carta da ONU é accionado. Como tal, os princípios sempre definiram a estrutura normativa usada pela Organização nas suas operações de manutenção da paz.
Contudo, a intervenção militar no âmbito da AMISOM não seguiu necessariamente o mesmo padrão. De facto, a criação da AMISOM pela União Africana (UA) através do seu Conselho de Paz e Segurança em 19 de Janeiro de 2007, com o endosso das Nações Unidas através da Resolução do Conselho de Segurança (UNSCR1744) de 2007 foi o primeiro tipo de intervenção em que a ONU autorizou o financiamento de uma força regional para uma operação de combate activa através da subsequente Resolução 1863 de 2009 que criou o Gabinete de Apoio das Nações Unidas para a AMISOM (UNSOA), e que em 2016 passou a designar-se por Gabinete de Apoio das Nações Unidas na Somália (UNSOS).
UNSOA foi estabelecida como uma entidade autónoma tendo como mandato a prestação de apoio logístico e financeiro às forças da União Africana mandatadas para combater o grupo terrorista Al-Shabab, bem como outros grupos radicais na Somália. Esta foi uma fórmula que a ONU encontrou para dar contributo directo e operacionalizar os esforços liderados pela UA, algo que nunca tinha acontecido antes na história das operações de manutenção da paz.
Decorridos já 12 anos desde a sua criação (Jan 2007 – Jan 2019), a Missão da União Africana encontra-se numa encruzilhada entre fracasso e sucesso.
Por outras palavras, continua a ser discutível a vários níveis se a intervenção militar na Somália foi bem sucedida ou falhada e, por extensão, o futuro deste tal modelo para outros teatros de operações de paz que venham ser levadas a cabo tanto pela UA como pela ONU. Uma análise estratégica dos primeiros dez anos de presença na Somália realizada pela própria União Africana em 2017, por um lado, elogiou a AMISOM pelo seu bom trabalho realizado em circunstâncias extremamente difíceis, e, por outro lado, criticou-a por não ter feito o suficiente. Incumbe-nos aqui a apontar alguns dos desafios que contribuíram para este quadro, designadamente:
1. Ao contrário da maioria das operações de paz, a generalidade das forças que compõem a AMISOM (22,126 efectivos) vêm de países que passaram por algum tipo de conflito inter-estatal na sua história com a Somália e com quem partilham fronteiras porosas, laços históricos e demográficos na região do Corno de África, nomeadamente o Quénia, a Etiópia e o Djibuti. Esses países compõem o que é conhecido como países de contribuição de tropas (TCCs) e, dada a sua proximidade imediata ao conflito, são também considerados Estados de linha de frente no jargão das operações de manutenção da paz. Por outro lado, Uganda também é considerado um Estado de linha de frente devido a seus interesses geopolíticos e à sua aproximação regional. Contudo, é relevante notar que na prática das operações de manutenção da paz, países vizinhos são geralmente desencorajados a enviar tropas para o país vizinho onde um conflito militar se esteja a desdobrar, pelo facto de não poder ser garantida a sua neutralidade.
2. Esta intervenção militar na Somália, proporcionou os actores envolvidos com uma arena que lhes permite avançar com os seus próprios interesses geopolíticos e estratégicos de segurança de uma maneira que persistentemente tem minado a implementação do mandato ao longo dos anos.
3. A intervenção da AMISOM na Somália também apresentou à UA com um grande desafio pelo facto das tropas da AMISOM nem sempre seguirem o princípio de comando e controlo no contexto das operações de manutenção da paz, comprometendo assim significativamente a eficácia operacional da missão. Durante o período em análise, tem sido notária a falta de coesão instalada, uma vez que os contingentes militares ao invés de receberem as ordens operacionais do Comandante em Chefe da AMISOM no terreno, muitas vezes, recebem-nas directamente das suas respectivas capitais nos países de origem.
4. A fadiga da missão tem sido outro desafio enfrentado pela AMISOM. Apesar do sucesso inicial nos primeiros anos de intervenção e do apoio inabalável da ONU e dos bilhões de dólares que já foram gastos em doze anos, a AMISOM parece ter alcançado um estágio de inércia, com uma série de reveses espetaculares, com grandes perdas de vidas e equipamentos nas mãos de Al-Shabab, que continua a ser uma força poderosa capaz de causar sérios danos à segurança e estabilidade na Somália e no Corno de África em geral.
5. Por fim, os Estados da linha de frente da região e seus poderosos aliados ocidentais, como os EUA, Grã-Bretanha e outros países europeus, bem como a Turquia e China, incluindo alguns países que integram o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC), como Qatar e Emirados Árabes Unidos, têm uma gama de interesses geopolíticos e estratégicos na região do Corno de África em general e Somália em particular, algo que moldou directamente o ambiente em que a AMISOM operou nos últimos doze anos.
Não obstante os desafios acima expostos, o conceito de Soluções Africanas para os Problemas Africanos, que esteve na base da criação da AMISOM, continua a ser uma aposta plausível internacionalmente. De facto, com meios adequados e capacidade institucional acompanhado de um forte apoio e uma parceria duradoura entre a ONU e a UA, existe uma grande oportunidade para continuar a promover a paz e a segurança em África.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador. Foto de AMISOM Public Information / domínio público
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