A senda do ódio

Toda esta amálgama já esteve na moda há cem anos. Esperemos só que o resultado não venha a ser agora o mesmo.

Há uns tempos numa biblioteca chamou-me a atenção a lombada de um livro cujo título era O Estúpido Século XIX. O apelido do autor, Léon Daudet, não me era estranho, porque o partilhava com o pai, o bem mais famoso romancista e dramaturgo Alphonse Daudet. Levei o livro para casa. O título sugeria-me uma obra vagamente espirituosa verberando as insanidades do seu tempo, e não me enganei. Mas ao mesmo, o livro revelou-se imediatamente como algo de muito mais contraditório, moderno e perturbante — porque era um livro eivado de ódio.

Léon Daudet era um escritor de algum talento. Mas era um autor que detestava, detestava e detestava. Logo nas primeiras páginas anuncia-se que o autor detesta a democracia. Detesta o parlamento e o parlamentarismo. Detesta a ideia de que a ciência “não tenha pátria nem fronteiras”. Detesta a ideia dos Estados Unidos da Europa (mais sobre isto à frente). Detesta a ideia da igualdade, e a ideia de que “o povo queira igualdade”. Detesta a ideia de que “a democracia seja a paz”. Detesta a ideia de que “a ciência seja boa e que o futuro pertença à ciência”. Detesta a ideia da “instrução laica” e mais ainda que a ideia de que “a instrução laica seja a emancipação do povo”. Detesta “a igualdade entre religiões”. Há muitas razões para acreditar que o século XIX tenha sido estúpido, como há muitas razões para encontrar estupidez em todos os séculos da história da humanidade. Mas as três primeiras razões que Léon Daudet encontra para chamar ao século XIX estúpido não são as que, à partida, estaríamos levados a prever, mas antes estas: “1. O Século XIX é o século da ciência. 2. O Século XIX é o século do progresso. 3. O Século XIX é o século da democracia”. Daudet odiava o século em que nascera pelas poucas razões pelas quais nós hoje ainda o poderíamos prezar. Já sobre o colonialismo, o racismo e o imperialismo, Daudet não tinha nada a dizer — porque era a favor do colonialismo, do racismo e do imperialismo.

Léon Daudet era um daqueles autores para quem a palavra “reacionário” foi inventada no seu sentido original. No entanto, apesar de utilizar a palavra “detestável” com uma frequência obsessiva (e outras semelhantes, como “nojento”, “medonho”, “asqueroso”, etc.), ele constrói uma técnica sedutora com que supostamente pretende “abrir os olhos” aos seus leitores, como ele alega ter-lhe acontecido a si mesmo. Ou seja: ele é irresistivelmente parecido com uma série de escritores, influenciadores e opinadores da nossa época, que apresentando-se como supostos combatentes contra o “politicamente correto” e a “justiça social”, mercadejam ódios e polarização. Trata-se de um antepassado da extrema-direita atual.

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As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.

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Rui Tavares

Researcher at CEI-IUL. PhD in History (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris). Member of the European Parliament and rapporteur for refugee and human rights issues in Hungary (2009-14). Research interests: History; Portuguese cultural and political history; European Union history and theory.

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