De regresso a Astracã?
Inspirei-me para este texto, entre outras obras que referirei mais adiante, no excelente livro de Bruno Maçães: “O despertar da Eurásia” que centra a atenção no peso geográfico de um imenso território que é muito mais do que a soma da Europa e da Ásia. A Eurásia é “um todo” muito completo.
Assim, com o mote assente nesta centralidade Euro-Asiática e através de dois pontos de observação, pensei em fazer uma pequena antevisão dos grandes desafios globais para 2019, olhando:
- De longe – sobre todo o planeta;
- De perto – através de um regresso a Astracã, algures entre Vladivostoque e Lisboa.
1. De longe – Com base no último livro de Stephen Hawking vale a pena destacar algumas passagens:
Das suas reflexões sobre e com o “Princípio da incerteza de Heisenberg” (p. 87) com a preocupação fundamental em entender o todo (quântico) sobre os fenómenos que se estudam. Se olharmos de longe, sobre o planeta, sentimos como é importante ter humildade científica na busca incessante pelo conhecimento. Para se construir o futuro é fundamental colocar a incerteza como uma constante (de Planck) nas análises e reflexões: “as coisas não têm uma história única, mas sim todas as histórias possíveis, cada uma com a sua própria probabilidade” (p. 206). Dá trabalho ser honesto, é duro aceitar a incerteza, mas é o caminho da ciência e, talvez, a única forma de entender a sociedade e o futuro deste nosso planeta.
“Temos a tecnologia. Só precisamos da vontade política” (p. 199). Esta incapacidade de, como humanidade, não sabermos criar espaço de entendimento para tirar partido daquilo que a inteligência criou. Há formas de lidar com o esgotamento de recursos, de criar energia limpa, de evitar o aquecimento global, de prevenir pandemias e de conseguir erradicar as doenças e a pobreza, mas, independentemente das soluções de futuro, Hawking mostra a sua convicção: “Estou convencido de que os seres humanos têm de deixar a Terra” (p. 202).
Os seus alertas sobre as enormes oportunidades e riscos que advêm da Inteligência Artificial (IA) estão muito bem resumidos neste livro. Em concordância com o espírito dos alertas de Elon Musk, Bill Gates, Steve Wozniak, Noah Harari, António Damásio e tanto outros, resume assim: quando “os computadores tiverem uma complexidade semelhante à do cérebro humano” (p. 213), ou seja “quando a IA se tornar melhor do que os humanos na concepção da IA, para que possa melhorar-se recursivamente a si própria sem auxílio humano, poderemos enfrentar uma explosão de inteligência” (p. 238) que tem de ser vigiada: “Os investigadores devem trabalhar para criar uma IA que possa ser controlada” (p. 245). Mas, como sempre, conclui: “O nosso futuro é uma corrida entre o poder crescente da nossa tecnologia e a sabedoria com a qual a utilizamos. Vamos garantir que a sabedoria vence” (p. 252).
Por fim, uma defesa intransigente, universal: “a imaginação continua a ser o nosso atributo mais poderoso. Com ela podemos vaguear por onde quisermos” (p. 256). “O futuro dependerá mais da ciência e da tecnologia do que o de qualquer geração anterior” (p. 259) e, não se trata da defesa de elites, pelo contrário, Hawking defende o conhecimento por todos “cientificamente literados e inspirados a envolverem-se com os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, para aprenderem mais” (p. 265).
“Não acredito em limites, nem para o que podemos fazer nas nossas vidas pessoais nem para o que a vida e a inteligência podem alcançar no universo” (p. 266). Basta (re)ver o filme que conta a sua história (A teoria de tudo) e entender como esta frase é, além de pensada e sentida, também vivida.
2. De perto – o livro de Maçães força-nos a mudar a análise olhando de forma mais equilibrada entre oeste e leste, neste grande espaço contínuo que habitamos.
Astracã (p. 218) ou a descrição da “Rainha da Eurásia – a Turquia” (p. 265) são bons exemplos para sentirmos esta dimensão. Astracã foi, há uns séculos atrás, um dos centros deste grande continente e, o Bósforo, hoje, continua a ser um centro fundamental de todas as decisões globais. Somando as visões de Hawking às de Maçães, permitam-me que destaque algumas observações:
Neste presente-futuro as grandes potências vão muito para lá do espaço europeu: EUA, China, Rússia, Japão, Índia, Indonésia, Brasil e… Alemanha? (p. 2). Se o poder assim se distribui, o centro das nossas vidas também terá de refletir estas dinâmicas. Nesta “segunda era da globalização” (p. 6), com fronteiras mais difusas, voltamos a descobrir a força natural da geopolítica, a evidência das distâncias e das proximidades que, aliadas à tecnologia, criam oportunidades que, embora já tenham existido em tempos idos, se reforçam hoje pela velocidade (dos eixos terrestres – estradas e caminho de ferro com comboios de alta velocidade), pela ciência da comunicação (internet e redes sociais), pelas possibilidades de navegar outros mares (a rota do ártico – “a via marítima norte é 37% ou 7.400 quilómetros mais curta que a via do sul através de canal do Suez” – p. 80) e pelo engenho humano em criar plataformas de entendimentos económicos superiores às divisões políticas, sociais e históricas. Ásia e Europa estão fisicamente unidas. O Cazaquistão está no meio, Astracã também: “a divisão entre a Europa e a Ásia não é uma divisão no espaço, mas no tempo” (p. 27) e, esse tempo, já passou.
A Ásia é hoje tida como “um símbolo de sucesso” (p. 71) e no futuro teremos de saber (Europa, Rússia e China) tirar partido de novas oportunidades, de crescermos juntos em vez de nos anularmos mutuamente. Não é fácil, nunca o foi. Mas é possível e está a acontecer. Maçães mostra-nos inúmeros exemplos de transformações em curso e que tornam efetiva uma maior proximidade, conectividade e dependência entre “Xangai e Lisboa” ou de “Lisboa a Vladivostoque” (pp. 77-78). Desde o aparecimento de novos centros de desenvolvimento económico “Kirkenes, na Noruega” ou “Murmansk, na Rússia” que tiram partido da nova “Rota da Seda do Gelo” (p. 81), do “porto seco de Khorgos” na fronteira entre a China e o Cazaquistão (p. 165) que praticamente foi pensada e desenvolvida de raiz para alimentar as rápidas rotas terrestres e as trocas comerciais de enorme volume – “em comparação com mais de um mês para o transporte marítimo dos portos da China para a Europa, os serviços ferroviários …. podem levar apenas 10 dias” (p. 167), da zona comercial de Yiwu, perto de Xangai, com as suas 10.000 lojas e centros de transporte tanto marítimos como terrestres (p. 190). Os exemplos são muitos e, tanto encontramos razões para uma maior proximidade, como se enumeram as enormes barreiras políticas e históricas que as travam ou as substituem. Astracã é Rússia e ainda é “cosmopolita onde cristãos, muçulmanos e budistas” aprenderam e continuam a conviver (p. 216). As oportunidades, de Riade a Nova Deli, de Karachi a Tóquio, de Madrid a Istambul, são tantas e tão variadas, como são, evidentemente, as dificuldades e riscos que as acompanham.
Neste livro a Europa é descrito como uma “Península” (p. 291) deste grande espaço que tem, além das vantagens e desvantagens, de competir com os restantes gingantes do mundo. Uma inevitabilidade: o mundo transforma-se rapidamente e, ou acompanhamos e vamos na frente ou ficamos para trás. Sozinhos? nunca mais será possível. Ler este livro (aconselho vivamente a sua leitura completa) faz-nos olhar de pontos diferentes e em ritmos muito variados, mas deixem-me então cruzar Hawking, Maçães com mais um pensador bem conhecido: Francis Fukuyama.
“Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento”, de Fukuyama, alerta para o problema das identidades exageradas (nacionalismos radicais entre outros) e para o crescimento das desigualdades económicas como causadores de momentos de desagregação. Não entrando em tanto pormenor nesta obra (ficará para um futuro artigo), podemos inferir os alertas Hawking com a visão georealista de Maçães: é dentro das sociedades que persistem os problemas principais, e que nos impedem de ultrapassar as barreiras incontornáveis das desconfianças. O que nasce da política apenas de pode resolver na política. “A modernização significa mudança e disrupção constantes e abertura a escolhas que não existiam antes” (p. 186), diz-nos Fukuyama, o mundo mudou mesmo e… como alerta Hawking, não temos muito mais tempo a perder.
Visto de longe, temos de resolver a equação difícil em que nos encontramos: somos mais, consumimos muito mais, temos poucos recursos para satisfazer a procura, estamos a degradar o ambiente, mas temos a tecnologia, a geografia e a solução económica à vista de todos. Falta, naturalmente, a política global, determinada e coordenada, para resolver este problema.
Visto de perto, deixamo-nos iludir com práticas e vivências recentes, de poucos séculos, e quedamo-nos reféns das questões da proximidade, da identidade e da rutura regional. Temos de passar a ver de longe para onde queremos ir e, de mais perto, para onde devemos centrar a nossa atenção e colaboração.
Não será fácil. Mas é possível. É tempo de olhar mais a partir de fora e ver muito para além das fictícias fronteiras que inventámos. O centro não é nem na Península Europeia nem em Astracã, nem no Bósforo. Não existe centro num mundo redondo. Podemos, isso sim, centrar a nossa ação a partir do ponto onde nos encontramos e, nesse caso, é forçoso olhar em 360 graus. Mal seria se assim não fosse. Mas obrigarmo-nos a perturbar a visão apenas porque nos dizem que as fronteiras de interesse terminam nos montes Urais é… vistas curtas.
Visto de longe e de perto, teremos de saber regressar a Astracã e olhar para além de amarras fictícias. O mundo desenvolve-se, garantidamente, em múltiplos polos globais. Nós, portugueses, é bom que saibamos olhar profundamente, em todas as direções, firmes na nossa ligação atlântica e bem ambiciosos para lá dos montes Urais. “Não é claro que a Europa tenha uma identidade mais forte do que as velhas identidades nacionais que se supunha suplantaria” (Fukuyama, p. 167). Claro que não, nem, sobretudo, de outras identidades fora do seu espaço. Há muito que a arrogância das superioridades identitárias morreu, ou devia ter desaparecido. Por isso é bom, mesmo muito bom, olharmos o mundo a partir de vários “centros” e buscar diferentes panorâmicas modernas, no sentido das dinâmicas de 2019. Termino com o legado que nos deixou Stephen Hawking: “Lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os pés… soltem a imaginação. Deem forma ao futuro” (p. 268).
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador. Mapa sobre o conceito de 'heartland' de Halford Mackinder, "The geographical pivot of history" (1904)
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