Descolonização: O Esquecimento da História e Mário Soares

Uma notícia do jornal Público, escrita aquando da sua morte, sintetiza três momentos polémicos da vida de Mário Soares: a descolonização, o chamado “fax” da Emaudio em Macau e as lutas políticas com Manuel Alegre. Entre o início da década de 1980 e meados da década de 1990, Soares surgiu como um intermediário, um “homem do meio” da política portuguesa, uma espécie de herói nacional que conseguira, com apoio de outras forças políticas, evitar uma deriva mais radical no seio das forças políticas portuguesas no pós 25 de Abril e, em simultâneo, contribuiu para a normalização da política no mesmo período, com a criação das bases do Estado Social. Conjugou desta forma numa única figura o epíteto de lutador democrático, que logrou igualmente colocar Portugal na rota da modernidade, com a entrada na CEE em 1986.

A descolonização e o seu impacto

Destaco a descolonização, pelo impacto que teve em termos económicos e sociais para Portugal. Habitualmente refere-se que Portugal fez uma descolonização demasiado rápida sem que o governo tenha negociado adequadamente os termos da mesma, com consequências negativas na defesa dos interesses dos colonos. A descolonização era contudo, inevitável! Portugal foi o primeiro país europeu a chegar a África e o último a partir – a teimosia do regime anterior foi fatídica para a posterior evolução dos acontecimentos. A posição interna e externa de Portugal a favor da manutenção do império era absolutamente insustentável, em particular quando as restantes potências europeias já haviam descolonizado e as próprias Forças Armadas não encontravam solução na via armada para a resolução das guerras em África (a publicação de Portugal e o Futuro pelo General Spínola constituiu uma expressão deste sentimento).

O silêncio sobre a descolonização

A questão da descolonização, contudo, só começou a ser discutida abertamente há cerca de uma década, quinze anos, no máximo. Até meados dos referidos anos 1990, este período histórico era “esquecido” ou “ultrapassado” nas escolas. Quem tenha frequentado o ensino secundário em Portugal entre meados da década de 1980/1990 sabe que os currículos escolares apenas contemplavam, ou se contemplavam mais, a matéria lecionada nunca passava o período da primeira República. Ou seja, todo o período do Estado Novo foi “apagado” nesta altura com um corretor, acrescentado do período da Revolução e pós-revolucionário. Assim, períodos relevantíssimos para a análise do presente no nosso país só começaram a ser abordados, e mesmo documentados muito mais tarde, a partir da viragem do milénio.

Resumindo, o que queria destacar com esta publicação:

  1. o desconhecimento do passado recente para a geração nascida após o 25 de Abril, facto em grande parte atribuível a uma dificuldade de políticos, professores e pensadores em abordar e expor os temas referidos (colonização/descolonização) e Revolução;
  2. o facto de só muito recentemente se ter começado a pesquisar e a debater a questão colonial, a descolonização e o regime do Estado Novo.
A descolonização: uma “ferida aberta”

A descolonização é ainda uma “ferida aberta” para os milhares de pessoas que regressaram há quatro décadas. Recordo-me que nos anos 1980/1990 a colonização e os colonos eram algo que o país deveria tentar esquecer, devendo virar-nos então para a Europa e esquecer a “aventura africana”. O governo português demonstrou contudo grande capacidade de dar resposta às necessidades dos milhares de pessoas regressadas (que representavam uma quota relevante da população então residente). Posteriormente fui conhecendo filhos de “retornados” e, mesmo “retornados” ou portugueses nascidos em África, que nunca se conseguiram identificar com Portugal, e comecei a ouvir o outro lado da narrativa da colonização/ descolonização. Este lado é importante e essencial para pensarmos a História não de um ponto de vista maniqueísta ou dogmático, e em sequência, para pensarmos na História do nosso país de modo informado.

Mário Soares foi um ator chave nos eventos referidos, tanto na luta contra o Estado Novo, sobretudo na sua vertente internacional e nas parcerias que estabeleceu enquanto esteve exilado, essenciais igualmente para a fundação do Partido Socialista em Portugal. Foi também um ator chave no processo de descolonização, que precisava ser rápida como refere Bruno Cardoso Reis, considerando o contexto da época. No entanto, Mário Soares não foi o único obreiro da democracia em Portugal, sendo determinante para o processo o próprio movimento militar, liderado pelo MFA.

Igualmente, o seu papel central na descolonização pode ser contestado nomeadamente nos acordos do Alvor, que determinaram os termos da entrega do poder aos movimentos de libertação nacional em Angola. Aqui alega-se que os acordos deveriam prever que o poder apenas seria entregue após a realização de eleições. Intenção nobre se os movimentos não estivessem há mais de uma dezena de anos, à data da independência, em guerra aberta, para além da guerra com Portugal. O governo português não podia, como se referiu, sustentar a presença militar portuguesa por mais tempo – o país necessitava desesperadamente de apoios internacionais, após anos de isolamento e não podia manter uma posição de defesa da democracia na metrópole, a par das guerras coloniais nos territórios. Em resumo, há muito a explorar, descobrir e questionar sobre a História do país no último século.

Podemos acrescentar que talvez fosse mesmo essencial que passasse o tempo necessário para que a descolonização e a revolução democrática pudessem começar a ser analisadas à luz da História.

Hastear da bandeira da Guiné Bissau após o arrear da de Portugal em Canjadude, 1975. Foto de João Carvalho / Public Domain

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Sofia Fernandes

Researcher at CEI. PhD in African Studies (Iscte). Master in International Development and Cooperation (ISEG). Research interests: economic diplomacy, development aid, State relevance in economic development processes.

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