As negociações pela paz em Moçambique: aquilo que não entendo de uma linda história
O Acordo entre o Governo e a Renamo
Desde os finais de Dezembro de 2016, quando Dhlakama declarou de forma unilateral o cessar-fogo depois de cerca de três anos de confrontos militares no centro do país, Moçambique está assistindo a uma linda história. A linda história consiste no facto de as duas partes (o Governo e a Renamo) terem alcançando, embora verbalmente, um acordo sobre as questões principais que foram motivo de tanta discórdia nos últimos anos, nomeadamente descentralização e assuntos militares, que consistem na entrega definitiva das armas por parte da Renamo, e na inserção dos seus quadros no seio do exército nacional.
O mais lindo ainda é que a trégua – num primeiro momento de uma semana, depois de dois meses e agora, parece, sine die – resiste, salvo raríssimos episódios, inclusive minimizados pelos próprios líderes das duas partes. A imprensa, a começar pela pública, já não trata Dhlakama como o irredutível guerrilheiro ou, ainda pior, como o bandido que só anda a desestabilizar o País: não, agora mesmo a comunicação social mais próxima ao governo retrata o líder da Renamo como um indivíduo responsável, que tudo está fazendo para chegar à almejada paz.
Trata-se de uma história muito linda, sem dúvidas. E este idílio nacional não deve ser rompido por reflexões críticas, que poderiam despertar um “cão que dorme”. Só que existem elementos que não entendo e que gostaria de assinalar.
A crise política e as eleições de 2014
O Governo e a Renamo estão numa situação de crise política, que tem desaguado numa tensão militar desde 2013, ainda sob a presidência de Guebuza. Foram realizadas cerca de 100 rondas negociais, com mediadores nacionais, no Centro de Conferências Joaquim Chissano. O resultado foi um fracasso total, que não conseguiu alcançar nenhum tipo de acordo. Em 2014, nas vésperas das eleições, foi celebrado, entre Guebuza e Dhlakama, um acordo para Cessação das Hostilidades, de maneira a fazer com que as eleições pudessem decorrer duma forma ordeira, graças sobretudo à pressão da comunidade internacional. Coisa que aconteceu, pontualmente. E pontualmente, como tem acontecido por todas as eleições em Moçambique (com a parcial excepção das primeiras, em 1994), as oposições (nomeadamente Renamo e MDM) não reconheceram os resultados.
A Renamo só aceitou tomar posse no Parlamento após Dhlakama e o novo Presidente Nyusi terem concordado num pacote para a descentralização, que o Parlamento devia aprovar, sob proposta da Renamo. Quando a Renamo submeteu a proposta, os parlamentares da Frelimo chumbaram-na e assim a Renamo viu as suas expectativas frustradas.
De imediato, Dhlakama começou a exigir a governação por parte da Renamo nas seis províncias onde o seu partido tinha ganho, não apenas nas eleições presidenciais, como também nas provinciais. Uma vez que, neste tipo de eleições, apenas a Assembleia é eleita directamente pelo povo, ao passo que os governadores são nomeados pelo Presidente da República, a única forma para que isso acontecesse era que Nyusi nomeasse governadores da Renamo lá onde a Renamo tinha ganho. Um cenário possível do ponto de vista constitucional, mas altamente improvável em termos políticos. E, de facto, Nyusi procedeu à nomeação de governadores todos pertencentes ao partido Frelimo.
No entretanto, o acordo de Cessação das Hostilidades foi ultrapassado pelos eventos. Os confrontos militares foram retomados, inclusive com uma certa violência, e a Renamo continuava a exigir a governação das seis províncias.
Mario Raffaelli, o mediador internacional
Foi nesta altura que as duas partes, sob pressão da Renamo, resolveram pedir ajuda a mediadores internacionais. A delegação, muito compósita, heterogénea e numerosa, foi chefiada por um pilar da paz em Moçambique, Mario Raffaelli, italiano, que actuava desta vez em nome da União Europeia. Raffaelli é um “amigo” de Moçambique e teve um papel muito relevante na assinatura da histórica paz entre Governo e Renamo em 1992 em Roma, depois de 16 anos de guerra civil.
As negociações aparentaram logo serem difíceis: com efeito, o nó era a governação por parte da Renamo das seis “famosas” províncias. Em Agosto de 2016, as duas partes assinaram um pré-acordo, centrado justamente neste ponto: é verdade que não foram colocadas datas (dizia-se “o mais cedo que for possível”), mas o princípio foi estabelecido duma forma inequívoca. A partir deste momento, o Governo começou a ganhar tempo e afastou-se cada vez mais dos observadores internacionais, cuja presença tinha sido exigida por parte da Renamo, mas que a Frelimo nunca viu com bons olhos. Foi claro para todos os observadores que aquela cláusula não podia ser aceite pela Frelimo, tanto mais diante da insistência dos mediadores internacionais, que tinham fixado como data limite o mês de Novembro de 2016, para que o pacote legislativo sobre descentralização (cujo fulcro teria sido a eleição directa dos governadores provinciais nas próximas eleições de 2019, e a entrega das seis províncias) desse entrada na Assembleia da República. Dentro da Frelimo, a “entrega” das seis províncias configurava-se como algo de insustentável e era lida como uma pura humilhação.
Os mediadores voltaram para casa e nunca mais foram chamados. Aliás, as duas partes, desta vez em uníssono, declararam que a fase da mediação levada a cabo por parte dos mediadores internacionais tinha terminado e que agora as estavam em condições de conseguir um acordo sem a necessidade de sujeitos externos. Situação que se está a verificar nestas últimas semanas.
O Falhanço de uma História linda
Em suma, a história linda é a seguinte: houve duas fases, bastante longas, de mediação do conflito entre Governo e Renamo. As duas fases falharam (esta é a palavra certa, fora da linguagem diplomática de circunstância). Logo depois destes falhanços, as duas partes mostraram concordância sobre quase todos os temas da contenda e muito provavelmente irão assinar um novo e definitivo acordo de paz. No entretanto, a questão das questões (a governação por parte da Renamo das seis províncias) desapareceu da agenda política e da mesa das negociações duma forma repentina e sem que a opinião pública tenha sido “alertada” relativamente a esta circunstância.
Trata-se de uma história linda, mas que revela, ao ser analisada com um mínimo de racionalidade, grandes zonas de penumbra. Porque razão a Renamo declara unilateralmente a trégua? Porque já não está interessada em governar de imediato nas “suas” províncias? Porque razão é agora Dhlakama representado como um interlocutor político credível, ao passo que anteriormente era tratado como se fosse, usando uma expressão dos tempos passados, um “bandido armado”?
Podemos acreditar que os telefonemas entre Nyusi e Dhlakama tenham surtido o efeito esperado. Mas também nos podemos perguntar porque esses telefonemas demoraram assim tanto, se foram eles o elemento decisivo para encaminhar a mediação nos carris certos? Será que era necessário deixar morrer centenas de pessoas antes de os dois líderes pegarem nos respectivos telefones para resolverem as questões mais problemáticas?
Reflectir sobre estas questões ajudaria, provavelmente, na transparência dum processo que todos os Moçambicanos gostariam que fosse concluído, finalmente, com a implantação da paz.
Mozambique’s President (Armando Guebuza) and RENAMO leader (Afonso Dhlakama) ratifying the peace agreement that ended more than two years of conflict. Photo by Voice of America / Public domain
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