Review | Pensar África: Islão, Matrilinearidade e questões de poder entre os Macuas de Nacala
No passado dia 23 de Março o Pensar África contou com a apresentação de Maria João Baessa Pinto sobre o tema “Islão, Matrilinearidade e questões de poder entre os Macuas de Nacala”, em que apresentou os conflitos de poder entre o Islão patrilinear e a cultura matrilinear dos Macua de Nacala.
A zona de Nacala, habitada pelos Macua, corresponde à zona Norte de Moçambique, com cerca de um terço da população total do país. Com um importante porto comercial na rota do Índico, tendo tido no passado importantes sultanatos e califados, tem, e teve, um papel preponderante na África Austral e em Moçambique. Foi ainda nesta zona que a RENAMO venceu pela primeira vez eleições locais à FRELIMO, e foi nela que a presença militar portuguesa durante a Guerra Colonial mais se fez sentir.
Neste território, a presença islâmica remonta aos séculos IX e X d.C., especialmente nas zonas costeiras. Desde então, a cultura islâmica patrilinear e patriterritorial tem vindo a colidir com a cultura dos Macuas, matrilinear e matriterritorial. Na cultura dos Macua, são as mulheres quem transmite a linhagem, é a partir da mãe que se transmite o Nihimo (pertença a uma determina família, e condição essencial para o estatuto social da pessoa), e é às mulheres que pertence a terra. Embora o poder político seja exercido tradicionalmente por um chefe homem, o Mwene, este nunca o exercerá se não tiver associado a ele a Apwiyamwene, uma mulher, descrita pelos europeus como rainha, e sem a consulta da qual nenhuma decisão importante poderá ser tomada. Além disso era, e é, nas mãos da Apwiyamwene que reside o poder religioso, sendo ela que oficía as mais importantes cerimónias religiosas. Importa ainda referir que existem (embora alguns textos cientificos mais recentes o negassem) diversos relatos históricos de Apwiyamwenes que, à falta de um herdeiro seu com o Mwene, assumiam o poder.
Com a presença islâmica na região, as tradições matrilineares dos Macua entraram em choque com a Sharia, no que respeitava à posição social de cada um dos géneros. No litoral, o Islão penetrou de forma significativa, com a religião a tornar-se de longe a mais praticada. Sendo que aqui se notaram os avanços da patriarquia. Se inicialmente as tradições locais se misturaram com o Islão, na prática da própria religião (por exemplo com a presença de mulheres nas mesquitas), ao longo dos anos a patriarquia acabou por, em termos religiosos e não só, se tornar dominante. Com a penetração dos habitantes do litoral nas regiões do interior, devido ao tráfico de escravos, assim também o Islão foi levado para estas zonas. A patriarquica conseguiu alguns avanços, através do casamento de chefes religiosos do litoral com filhas de Mwenes do interior. Assim, estes assumiam a chefia, em colaboração com os homens do interior, que desejavam ver a patriarquia tornar-se dominante. Sendo que, naturalmente, estas movimentações geravam muitas vezes conflitos com as Apwiyamwenes do interior.
Mais recentemente, os conflitos entre tradição e modernidade assumiram também contornos relevantes na realidade política moçambicana, surgindo também aqui uma oposição entre RENAMO e FRELIMO, em que a primeira se assume como guardiã das tradições (que agora incluem o Islão) e a segunda é vista como cristã e inimiga destas regiões. Em Nacala, o Islão assume sem dúvida um papel de enorme preponderância, e não só em termos religiosos. As ONG’s islâmicas assumem um enorme papel junto das populações, construindo mesquitas, organizando peregrinações a Meca, e tendo um grande papel em termos de educação. Neste último plano, estas ONG’s criaram escolas desde a primária até ao ensino superior, com um ensino certificado. Assim, competem com o ensino tradicional, não certificado, e baseado na tradição oral.
Um outro poder que foi mantendo, naturalmente, relações tanto com os poderes islâmicos como com os poderes tradicionais, foi o poder colonial. Inicialmente, este aproximou-se dos Mwenes, os chefes linhageiros tradicionais, concentrando neles a autoridade territorial, religiosa e administrativa, inclusive determinando que estes (combinando as três autoridades) auferiam salário. Contudo, com o surgir dos primeiros surtos independentistas, as autoridades portuguesas começaram também um processo de alianças com os chefes não linhageiros, até aí excluídos. Esta política de constantes alianças irá funcionar, pois em Nacala nunca haverá implantação da FRELIMO. Com a independência, esta baniu as práticas tradicionais na esfera pública, o que levou ao crescimento de um sentimento de oposição ao novo regime, que irá redundar num apoio à RENAMO na guerra civil. Com o fim do conflito, a política religiosa da FRELIMO entrará numa fase mais moderada, e é aqui que entram as ONG’s islâmicas, que muitas vezes acabam por se substituir ao Estado no cumprimento das necessidades básicas das populações.
Contudo, os conflitos entre mudança e tradição, manter-se-ão sempre presentes na região de Nacala, mais recentemente também dentro do próprio Islão. Aqui, surgem também tradicionalistas e reformistas. Os reformistas, na sua maioria jovens que estudaram fora e agora voltam, encontram velhas estruturas que não oferecem emprego ou possibilidades de colaboração com ONG’s. Assim, preocupados com a sua situação económica e falta de mobilidade social, podem por vezes, como aconteceu recentemente, acabar por se radicalizar.
No entanto, paralelamente a todas as estas dinâmicas, e a todos estes conflitos, a tradição matrilinear mantém-se, apesar dos desafios colocados pelo Islão. De facto, ainda hoje, volvidos 1000 anos da chegada do Islão ao território dos Nacala, vemos Apwiyamwenes a exercerem o poder político.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.
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