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Trump e a Era da Pós-Verdade

Com a ascensão dos famigerados populismos e mais especificamente com a vitória de Donald Trump nos EUA, popularizou-se a ideia de que entrámos na era da pós-verdade. Para assinalar este fenómeno, a Oxford Dictionaries escolheu a “pós-verdade” como a palavra do ano. Esta era é definida como sendo uma era onde o debate político apela exclusivamente a emoções, inventando-se factos e criando-se falsidades para captar a simpatia dos eleitores.  Por outras palavras, este é um período onde a verdade só interessa quando ajuda a chegar ao poder. Esta é também uma era ligada ao fenómeno das “notícias falsas”, supostamente criadas na internet pela imprensa alternativa e difundidas nas redes sociais.

Naturalmente, esta narrativa não é ideologicamente neutra. É uma narrativa promovida pelos defensores do paradigma universalista liberal ou igualitário. Pode também ser vista como a narrativa daqueles que sentem que o centro ideológico do poder está a fugir-lhes, e a responsabilidade por esta fuga é atribuída à existência de meios de informação alternativos. Apesar de “notícias falsas” ser um conceito algo vago, a narrativa refere-se especificamente a notícias que colocam em causa a legitimidade da moralidade política vigente; nomeadamente,  notícias sobre imigração nociva, identidades nacionais, elites maquiavélicas, relações inter-étnicas, ou relações de género.

Em suma, a ideia geral veiculada é a de que os populistas estão em ascensão porque as pessoas consomem este tipo de notícias supostamente falsas. O próprio Trump é visto como um fenómeno das redes sociais, tendo usado um discurso anti-sistema assente nos sentimentos da era tecnológica da pós-verdade.

E antes de Trump?

Contudo, há uma forte ironia neste processo. A era da pós-verdade começa quando grande parte das notícias dadas pela imprensa mainstream sobre as eleições americanas (e sobre o Brexit) estavam completamente erradas. Durante meses escreveu-se que Trump não tinha hipóteses de ganhar, que alguém como ele só podia perder, que já não havia demografia para uma vitória de Trump, etc. A título de exemplo, o NY Times dava 84% de hipóteses de vitória a Hillary Clinton imediatamente antes de as eleições começarem.

Podemos dizer que a imprensa não conseguiu prever Trump nem perceber os sentimentos que levaram boa parte dos americanos a votarem nele. A principal razão para tal é que a imprensa mainstream revela uma tendência ideológica forte que impede o tratamento de todos os assuntos com a imparcialidade e racionalidade que seria ideal. Ou seja, para usar uma frase famosa do psicólogo Jonathan Haidt, “Morality binds and blinds” (a moralidade cega e une). Devido a esta parcialidade ideológica, a imprensa mainstream há muito que promovia uma versão da verdade que estava longe de ser objectiva. Quando Trump ganhou, deu-se o choque geral. Isto apesar de aqueles que se moviam nas redes sociais alternativas percepcionarem que tal seria possível e saberem os motivos para a vitória.

Mas há verdade?

Talvez ainda mais paradoxal é que esta narrativa igualitária universalista há muito que é influenciada por uma corrente filosófica pós-moderna, construtivista, perpectivista e relativista onde a verdade não existe. Para esta corrente, não é possível ter acesso à realidade e como tal tudo é perspectiva, linguagem e construção social. É desta corrente que nascem as ideias de que as noções tradicionais  de sexo, identidade pessoal ou colectiva são construções sociais e não entidades naturais objectivas. Assim, um homem não tem de ser um homem, pode transformar-se no que quiser, atingindo assim o ideal liberal do indivíduo que escolhe quem quer ser sem imposições externas.

Esta visão pós-moderna da verdade, cujos representantes são filósofos igualitaristas como Jacques Derrida, Michel Foucault ou Richard Rorty, rejeita a tradição da civilização europeia que, pelo menos desde Aristóteles, considera que não só podemos ter acesso à realidade/verdade como devemos procurá-la através do conhecimento e da ciência. Uma leitura “selectiva” de Nietzsche inspirou esta visão relativista que conduz a narrativa igualitária. Contudo, Nietzsche nunca defendeu que não havia verdade (questionou sim a “vontade de verdade”) e era inclusive um naturalista que postulava que nós somos determinados por factos constitutivos (e.g. fisiológicos) que nos definem. Analisando as motivações dos partidários do pós-modernismo, é possível dizer que queriam promover valores liberais de tolerância e pluralismo e para tal pretenderam relativizar as naturais regularidades inigualitárias que a ciência e a observação revelam.

As contradições inerentes

Não obstante, o reconhecimento da “pós-verdade” na política como algo negativo revela que a verdade continua a ser estimada como um valor positivo no ocidente. Afinal de contas, o iluminismo deu-se enfatizando a razão e a busca pelo conhecimento. Esta dificuldade em estabelecer um estatuto para a verdade revela a falta de solidez dos defensores do paradigma liberal, começando a parecer mais um “vale tudo” para o defender.

Se a verdade fosse prioritária, seria reconhecido que a maior parte das pessoas não quer ser simplesmente um indivíduo (igual e livre), mas sim pertencer a um grupo, a uma identidade e a uma ordem de significado colectiva. Aqueles que estudam a ciência (evolutiva) estão bastante conscientes disso. Se os proponentes da narrativa da “pós-verdade” estivessem de facto interessados na verdade, saberiam que o fenómeno Trump não nasceu essencialmente de notícias falsas, mas sim de vontades primordiais observadas desde que há memória.

US President-elect Harry Truman holding the Chicago Daily Tribune on November 3, 1948, after having won to Thomas Dewey. The original headline read 'Dewey Defeats Truman'. The original photo (possibly taken by W. Eugene Smith) has been manipulated by H. Michael Karshis / CC BY 2.0

CC BY-NC-SA 4.0 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Filipe Faria

Research associate at CEI-IUL. PhD in Politics (King’s College London). Research interests: Social and Political Philosophy, Political Economy, Biopolitics.