Ver muito à frente olhando bem para trás
No último texto que aqui publiquei escrevi que iria voltar ao livro de Fukuyama “Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento.” Porque as suas observações constituem uma base segura para pensar “muito à frente”. Não porque o livro seja revolucionário, mas porque nos obriga a olhar dentro de nós – quem somos, mundo, e para onde poderemos ir?
Mas precisamos de acompanhar Francis Fukuyama com outro grande pensador de passados, presentes e futuros – Yuval Noah Harari e as reflexões do seu último livro (21 lições para o Século XXI). Mas do resultado do cruzamento destes dois pensadores tive de ir dentro da minha (nossa) identidade e socorrer-me de um dos melhores autores da História Militar Portuguesa e referenciar as identidades passadas com os desafios futuros. Refiro-me ao historiador Gonçalo Couceiro Feio e a sua magnífica obra (resumo da tese de doutoramento) “A Guerra no Renascimento.”
Só nos podemos aventurar muito à frente se soubermos entender muito bem o que fomos bem lá atrás. Não vou fazer recensões dos 3 livros, vou apenas “pegar” em quatro ideias e, através deles, dar uma opinião sobre caminhos de futuro:
- “Melhores guerreiros que outros? Não. Diferentes e como uma cultura muito própria? Sim.” (Feio, p. 272). É o debate sobre o que fomos… os melhores? Perguntam povos e Estados. Afirmam-se discursos mais ou menos patrióticos um pouco em todas as regiões do mundo. Todos encontram “história” para se dizerem melhoresmas …. e esta síntese de Couceiro Feio é clara – o que poderemos encontrar é, pela idiossincrasia de determinado povo, com a sua demografia, geografia e possibilidades (recursos), uma forma “diferente” de fazer. Isso é o que faz a identidade. Não é ser “melhor”, é simplesmente ser, estar de forma consolidada, num modo que se afirma diferente pela prática continuada de gerações. “Um país que carece de um sentido claro de identidade” (Fukuyama, p. 149) tem esse enorme desafio, para onde vai se não se sabe de onde se vem? O problema, diz-nos Harari (p. 139) “começa quando o patriotismo benigno se transforma num ultranacionalismo chauvinista”. Em 2019 andamos às voltas com estas coisas das identidades, exageradas ou apoucadas. Há um caminho óbvio, denominado bom-senso, mas o que é isso? Chamar-lhe-ia, antes, equilíbrios. Problemas globais precisam de soluções globais mas a civilização, embora única (Harari, p. 119), é a soma de várias identidades que têm de ser entendidas para se construirem formas de cooperação aceites e desenvolvida a ritmos diferentes. Não há “melhores” mas há “diferenças” e para se chegar a objetivos comuns é importante saber lá chegar de formas diferenciadas, a ritmos e modos adaptados a cada realidade geopolítica e histórica.
- “Se começarmos a depender da inteligência artificial para decidir o que estudar e com quem casar, a vida humana deixará de ser um drama de tomada de decisões” (Harari, p. 81). Extrapolando, poderão as “máquinas “ governar melhor? Claro que a IA ajudará, muito. Mas é a “cultura que é importante, não as identidades étnicas ou religiosas daqueles que tomam parte nela” (Fukuyama, p. 183). Então poderão as máquinas programar com algoritmos culturais? Serão programáveis? Inegavelmente que a IA poderá e ajudará muito mas … há coisas que só a vivência nos dá. Luís de Camões não teria escrito os Lusíadas se não tivesse estado quase 17 anos em atividade aventureira e militar um pouco por todo o mundo (Feio, pp. 132 e 143). A sua emoção, a sua escrita, afirmo eu, apenas se consegue pela vivência, individual, pelos sentidos, pela dor, pela ansiedade, por ver na “praxis” o que é traição e entrega, paixão e cobardia. Não é programável.
- “O ensino da formação cívica há muito está em declínio … isto tem de ser revertido” (Fukuyama, p. 195). Apreender. Feio chama a atenção para enorme importância da aprendizagem “à necessidade da escrita e da alfabetização pelo menos dos comandantes” (p. 192) que levará, mais tarde, a Luís de Camões escrever, no Canto V dos Lusíadas: “não houve forte capitão, que não fosse também douto e ciente”. Aprender, dentro e fora da sociedade, mas não apenas ciências e letras. Aprender a ser e a estar – ensino cívico. Voltar às origens sociais da nossa espécie humana é o que nos propõe Harari (p. 112): “as comunidades íntimas têm-se desintegrado. A tentativa de substituir pequenos grupos de pessoas que se conhecem umas às outras por comunidades imaginadas de países e partidos políticos nunca poderá ser inteiramente bem-sucedida”. Fundamental voltar ao ensino cívico, à cidadania, à comunidade. Tive o privilégio de escrever um texto sobre isso numa obra a três (com a António Telo e João Vieira Borges) a que chamei a – “Estratégia da Coesão”. Voltar à comunidade – conhecer, apreender e partilhar.
- “A geografia ou o medo separa os povos. A guerra dá-os a conhecer. A paz e o comércio também” (Feio, p. 70). Mal estaríamos nós se apenas com a guerra nos passássemos a conhecer mas o choque entre povos mostra muito mais do que vitórias e derrotas. Dão-nos a conhecer a verdadeira “alma” de um povo, da sua coragem, determinação, humanidade, desumanidade, da ética. A guerra não é, infelizmente, uma atividade em vias de extinção: “desde a crise financeira de 2008 que a situação internacional se está a deteriorar rapidamente com a promoção da guerra novamente na moda” (Harari, p. 201). O melhor é encontrarmos outras formas de nos conhecermos melhor. Não podemos permitir que o “medo” alastre. O contrário disso mesmo é o pugnar pelo aumento de confiança: “As sociedades vivem da confiança, mas precisam do raio de confiança mais amplo possível para prosperarem” (Fukuyama, p. 155). Vencer a guerra pelo aumento de confiança, não ignorar os avisos do aumento dos riscos da conflitualidade e saber-se ser aberto e conhecedor do “outro”. Não estamos no bom caminho, ao invés de comunicarmos e de nos conhecermos melhor construímos barreiras e muros, físicas e virtuais. No livro de Tim Marshal “Divided: why we’re living in an age of walls” choca-nos a revelação: em 2019 há 65 países com barreiras físicas (muralhas) enquanto que no final da guerra fria apenas havia 16 (p. 2). Ou seja, um terço da humanidade opta por se dividir. Aproximamo-nos pela tecnologia mas separamo-nos por barreiras físicas e firewalls. Nâo conhecer o “outro” aumenta a desconfiança e com a desconfiança vem o medo e com o medo….
Para se olhar muito à frente é preciso saber olhar bem para trás. Estes três grandes autores fazem isso, nestas e noutras obras que publicaram. Os quatro pontos escolhidos, entre tantos que poderiam ter sido eleitos, foi apenas uma forma de poder alertar para a importância do debate sobre os caminhos futuros que queremos percorrer. Não há “melhores” mas há diferenças. Não será a IA a dar-nos as ferramentas que substituam a emoção da vida, do contacto e do conhecimento íntimo. A cidadania, a civilidade ensina-se, aprende-se e tem de voltar a fazer parte da nossa aprendizagem coletiva. Há barreiras físicas em 2019. Muito mais do que havia em 1991 e vão continuar a aumentar. Como sobrevir a esta “condominização” forçada? Sabermos ultrapassar esta nova forma de nos organizarmos em sociedade?
Falta debate, falta política universal, faltam ambições de caminho futuro. Enquanto não aparecem propostas de melhor direção temos de saborear o que escrevem os “inconformados” com o que temos e poderemos vir a ter. Importante, fundamental mas…. Claramente insuficiente.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.
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