A “traição” de Soares e outros mitos sobre a descolonização portuguesa
O aspecto talvez mais controverso e que gera mais animosidades da vida política de Soares é o seu papel na descolonização. É fácil perceber que alguns das centenas de milhares de colonos portugueses que foram forçados a sair de Angola e Moçambique procurem alguém a quem culpar. E é típico que em guerras de guerrilha que nunca terminam com uma vitória convencional evidente, algumas lideranças militares e alguns veteranos apontem para os políticos e para uma facada nas costas para justificar a derrota, alimentando o mito de uma vitória traída. O grande traidor numa determinada versão da história da descolonização portuguesa seria Soares. Ora essa ideia assenta numa série de erros e mitos.
Portugal não podia fazer uma descolonização orgulhosamente só
A República da Guiné-Bissau, de que o PAIGC tinha proclamado unilateralmente a independência em 1973, era reconhecida por mais de 80 países – mais do que aqueles que mantinham relações diplomáticas com Portugal. A pressão de toda a comunidade internacional, começando pela ONU, e incluindo muitos dos nossos aliados ocidentais, ia no sentido da rápida descolonização. Soares sabia bem disso como primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros pós-25 de Abril. Grande parte dos países do mundo não queria esperar por eleições e não confiava em referendos organizados em territórios em guerra e com a presença de tropas portuguesas. O Secretário Geral da ONU veio a Portugal discutir independências rápidas via negociações directas com os movimentos independentistas que eram internacionalmente reconhecidos como os únicos representantes legítimos dos respectivos povos. Recorde-se ainda, que em 1975 não havia praticamente democracias multipartidárias em África, e que os EUA de Nixon estavam atolados no escândalo de Watergate.
Em Portugal em 1974 dominava a oposição à continuação das guerras
As únicas manifestações públicas sobre temas coloniais em 1974 eram para gritar “nem mais um soldado para as colónias”. Sem rotação de tropas, independentemente da vontade de políticos como Soares, a continuação da guerra era insustentável num prazo relativamente curto. E os movimentos independentistas não aceitavam um cessar-fogo sem negociações para a independência.
A descolonização era vista geralmente como inevitável e os principais partidos da direita não se opuseram a ela. Freitas do Amaral fez questão de sublinhar nas suas memórias que era um europeísta, e que o CDS deixou claro na sua primeira conferência de imprensa que o tempo de descolonizar tinha chegado. Os discursos e entrevistas de Sá Carneiro em 1974 deixam claro que o PPD/PSD considerava inevitável uma descolonização rápida. Os partidos representados no Governo Provisório aprovaram os acordos de independência da Guiné-Bissau e Moçambique e aplaudiram-nos de pé na Constituinte. E se em relação a Angola houve divergências, inclusive de Soares, elas não diziam geralmente respeito à independência ou ao envio de novas tropas, mas apenas a quem apoiar ou reconhecer.
E Spínola? O seu crescente isolamento internacional e interno levou-o a assinar, em Julho de 1974, uma lei constitucional que vinculava o país a uma descolonização rápida levando à independência, e a demitir-se em Setembro desse ano. Soares, ao contrário de Spínola, esteve politicamente bem acompanhado em 1974-75 na sua urgência em descolonizar.
A descolonização e a saída dos colonos foram comparativamente normais
Em nenhuma colónia europeia em África com uma presença forte de colonos europeus o fim foi outro que não fosse a saída deste últimos em grande número. Por várias vezes, da Argélia até ao Zimbabué passando pelo ex-Congo belga, essa saída deu-se de um modo mais sangrento do que nas colónias portuguesas.
O fim dos impérios está historicamente relacionado com grande violência. Niall Ferguson, insuspeito de simpatias esquerdistas, aponta como um dos principais factores explicativos da grande violência do século XX que este seja o grande cemitério de impérios. Há muitos exemplos de descolonizações tão ou mais precipitadas e violentas do que a portuguesa. Ao fim de dois anos os britânicos saíram da Índia/Paquistão e os Franceses da Argélia. Os belgas saíram do Congo em menos de um ano. Em todos estes casos a descolonização deu-se no meio de migrações forçadas e de um grau de violência igual ou superior ao que se verificou no fim do império português.
A descolonização portuguesa poderia ter sido diferente? Talvez se tivesse sido feita mais cedo se tivessem evitado as guerras. Mas também poderia ter sido diferente para pior. Se a guerra em 1974 tivesse sido continuado explicitamente em nome da defesa dos colonos, estes ter-se-iam provavelmente tornado alvos a abater. Em suma, estamos perante factores que escapam ao controlo de um actor, de um decisor. O máximo que se pode fazer é tentar prevenir ou atenuar os problemas.
Os negociadores portugueses, nomeadamente Soares, obtiveram nos tratados de independências algumas garantias formais, como sucedeu também no caso dos franceses ou dos britânicos ou belgas. Mas elas revelaram-se em boa parte impossíveis de aplicar. E os vários governos portugueses com a participação do PS conseguiram, apesar de tudo, a evacuação em segurança da esmagadora maioria dos “retornados”, e garantir financiamento e mecanismos legais que resultaram na reintegração relativamente bem sucedida destas centenas de milhares de refugiados.
Soares não foi o principal autor da descolonização, mas não a renegou
As grandes decisões que levaram à descolonização de 1975-75 foram tomadas, antes de 1974, por Salazar. Foi este último que, em 1961 (possivelmente, no início até com algum apoio popular), viu na guerra a única solução aos pedidos de independência. Mesmo que as guerras levassem, por exemplo, na Guiné a uma derrota “honrosa”, como Marcelo Caetano referiu, resignado, a um Spínola indignado, em 1973. Em 1974-75 foram os militares os decisores principais.
Ao sublinhar o peso decisivo dos militares na descolonização Soares talvez exagere, por vezes, as suas diferenças de opinião e de estratégia negocial relativamente ao MFA, ou o risco de um colapso militar imediato. Melo Antunes queixou-se disso. Mas Melo Antunes também nunca escondeu que foi realmente ele o principal responsável de um processo de descolonização, que ele e os seus companheiros do MFA viam como indispensável e justo.
Apesar de tudo, Soares foi o líder político que mais claramente assumiu a defesa da opção por uma descolonização rápida – algo controverso depois do regresso das tropas e de se poderem desenhar pacificamente planos ideais de descolonização. Talvez isso explique o especial ódio que lhe é votado.
Soares não acreditava que fosse possível democratizar Portugal sem descolonizar rapidamente. Era para ele uma questão de princípio, que o tinha levado a romper publicamente com a tradição de nacionalismo colonial do republicanismo português. No manifesto fundador do PS, em 1973, certificou-se de que o novo partido se afirmaria como “radicalmente anticolonial”. Não se podia lutar pela liberdade pela metade. Era também uma questão política prática. Já vimos a dimensão externa deste problema, a que Soares era muito sensível, sabia que resistir à descolonização seria um desastre para um país desesperado por apoio internacional para a sua democratização e desenvolvimento. Soares não ignorava também que politicamente seria suicida deixar a esquerda radical aparecer como os únicos defensores da paz, como os bolcheviques tinham feito na Rússia em 1917. Mais, se foi difícil organizar eleições no continente e nas ilhas, no prazo de um ano, em Abril de 1975, seria inconcebível fazê-lo ao mesmo tempo em territórios com a dimensão e população de Angola e Moçambique.
O fim do império português resultou em muitas vítimas inocentes
Convém lembrar, no entanto, que a maioria das vítimas mortais antes de 1975 foram africanos apanhados nas guerras pela independência pelas quais Soares não pode ser responsabilizado. E depois de 1975 as guerras em Angola e Moçambique foram sobretudo alimentadas por disputas pelo poder, pela estratégia do regime racista da África do Sul, e pelas guerras por procuração das superpotências da Guerra Fria. Responsabilizar principalmente Soares pelo fim do império português e pelos seus custos em nome de uma suposta traição a uma pátria pluricontinental que ele não reconhecia é historicamente insustentável. Afirmar que Soares defendeu que uma descolonização rápida era condição indispensável para a democratização e desenvolvimento de Portugal é um dado histórico que ele não negou.
Mário Soares in the Netherlands in 1975. Photo by Hans Peters - Anefo / CC-BY Nationaal Archief
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