Eleições moçambicanas: o fim da Segunda República e do “autoritarismo competitivo”
O investigador do CEI-IUL Luca Bussoti comenta as últimas eleições de Moçambique.
A Segunda República moçambicana tinha começado com muitas expetativas. A aprovação, em 1990, de uma Constituição democrática e garante do pluralismo político, seguida, em 1992, por um acordo de paz entre o Governo e a Renamo, depois de 16 anos de guerra civil e, finalmente, pelas primeiras eleições livres em 1994, induziram observadores, nacionais e internacionais, a considerar o moçambicano como um modelo de sucesso em África, a ser emulado por outras nações em conflito.
Ao longo do tempo se percebeu que esta Segunda República (depois da primeira, baseada no monopartidarismo da Frelimo) não assentava nos princípios que a Constituição propalava (com a exceção da concentração dos poderes nas mãos do Presidente da República), tais como o respeito dos direitos humanos, a plena liberdade política, a proteção das famílias mais pobres por parte do Estado. Em boa verdade, o modelo moçambicano baseava-se num “autoritarismo competitivo” (segundo uma feliz expressão de Levitsky), em que as eleições serviam apenas para confirmar o poder da Frelimo, sendo que uma “alternativa” (constituída pela Renamo o por outros, potenciais partidos da oposição) não estava na ordem do dia. A comunidade internacional adequou-se muito cedo a este modelo incompleto de democracia, como magistralmente De Tollenaere descreveu num seu texto publicado em 2006.
O modelo deixava claro dois aspetos:
- Podia haver eleições “renhidas” (como as de 1999, e também de 2014), em que medidas “administrativas” governamentais ao longo do processo eleitoral, corroboradas a posteriori pela comunidade internacional, iam confirmar a vitória em favor da Frelimo, facilitada nisso do controlo dos organismos eleitorais (em princípio super partes), assim como da justiça;
- Podia haver, assim como houve, experiências de governo, a nível das cidades, por parte da oposição (concretamente Renamo e MDM), nas eleições autárquicas, evitando, por parte da Frelimo, derrotas em cidades-chave, tais como Maputo (em 2013) e Matola (em 2018), mediante as famosas “medidas administrativas”, mas havendo um certo grau (variável) de tolerância no caso de vitória local por parte das oposições em outras autarquias.
As eleições gerais (e provinciais) de 2019 demonstram que este modelo se esgotou. Apesar do clima de guerra que ainda se vive entre Governo e Renamo (considerando a assinatura dos últimos acordos entre Nyusi e Momade como mero instrumento para realizar as eleições), segundo todas as fontes credíveis que têm trabalhado no apuramento dos votos e na observação eleitoral (EU, EUA, EISA, CIP, com o excelente Boletim do CIP e de Joseph Hanlon), desta vez as “medidas administrativas” ultrapassaram as previsões e, provavelmente, os resultados eleitorais estão longe de refletir a vontade popular. Se este pressuposto é verdadeiro, as conclusões poderão ser as seguintes:
- A Frelimo já não aceita qualquer interferência no processo eleitoral, desde o recenseamento (Gaza docet) até a contagem dos votos. Portanto, o “risco” de perder as eleições já não constitui um ponto na agenda do principal partido de Moçambique, e isso é feito de forma explícita e difusa para todo o território nacional. Os “competitors”, portanto, já não têm espaço para serem competitivos;
- A Renamo é um partido que – salvo quanto dito acerca de resultados eleitorais que provavelmente subestimaram a sua força – depois da morte de Dhlakama parece não haver os instrumentos internos para sair da sua transição. O seu presidente (eleito democraticamente em congresso) não possui o carisma do antigo líder, assim como as tensões entre ala militar e ala política, grupo do Norte (nomeadamente Makhwa) e do Centro (Sena e Ndau) estão enfraquecendo as capacidades políticas do partido. A Renamo está como sendo presa ao seu passado, havendo líderes potenciais com forte impacto junto à população moçambicana (só para fazer dois nomes: Manuel de Araújo, que ganhou por duas vezes as eleições em Quelimane, e Venâncio Mondlane, que virtualmente ganhou as eleições para o Município de Maputo em 2013 e foi um dos deputados mais brilhantes da última legislatura), que nunca poderão assumir a liderança do partido, devido ao seu passado. Se trata de indivíduos mediamente novos, que não pertencem à ala militar, e que sobretudo transitaram pelo MDM antes de entrar na Renamo. Em suma, apesar da sua grande popularidade, não são renamistas “de gema”, o que irá impedir-lhes de assumir os cargos mais altos na hierarquia interna ao partido, ancorada às antigas lógicas militares. Uma Renamo assim organizada dificilmente poderá continuar a garantir o elemento “competitivo” do modelo autoritário moçambicano, deixando campo livre à Frelimo. O que significa um ulterior empobrecimento do sistema democrático moçambicano;
- O MDM, assim como estava já claro a partir das eleições autárquicas do ano passado, não só continua como sendo o terceiro partido, mas a sua força está tão reduzida que o risco é o seu desaparecimento, em tempos relativamente breves. Uma vez que, entre 2009 e 2014, o MDM tinha representado uma “brecha” mas ao mesmo tempo uma confirmação do autoritarismo competitivo moçambicano, este seu recuo faz com que o campo político seja deixado, mais uma vez, ao duopólio Frelimo-Renamo, o que representa outra derrota para o sistema democrático moçambicano;
- Finalmente, não querendo falar das pequenas formações políticas que tentaram a aventura nestas eleições, sem nenhuma base popular nem eleitoral, o outro aspeto que nunca esteve na agenda política dos últimos meses foi a possibilidade de uma coligação entre as oposições, principalmente Renamo e MDM, para constituir uma frente com algumas possibilidades de vitória, inclusivamente a nível provincial, contra a Frelimo. Estes dois partidos ficaram cada vez mais inimigos, não só devido à origem do MDM em 2009, depois que Daviz Simango saiu da Renamo para fundar um partido seu, centrado na cidade da Beira; mas sobretudo em razão do fato de esta luta pressupor uma perspetiva em que o verdadeiro objetivo era a primazia dentro do panorama da oposição, muito mais do que uma possível vitória eleitoral. Em suma, uma perspetiva toda focada no papel que o “autoritarismo competitivo” atribuía às oposições, mas que, devido aos resultados e a como a Frelimo geriu o processo eleitoral, desaguou no fim daquele modelo, por falta de competitividade dos dois maiores partidos de oposição;
- Um último reparo vai ao papel dos “intelectuais”. Salvo raras exceções, quase todos eles se envolveram, diretamente ou mediante um posicionamento explícito, na campanha eleitoral. Postura que continua até hoje, diante dos contestados resultados destas eleições. É claro que cada um pode expressar livremente suas ideias e simpatias, entretanto esta demonstração de torcer abertamente e com argumentações mais sentimentais do que racionais comprova que mesmo do lado dos intelectuais o “autoritarismo competitivo” é um modelo que já está ultrapassado. Se mesmo eles – na maioria dos casos – apelam para que o “inimigo” seja destruído, ironizando de forma pesada contra ele ou enaltecendo paroxisticamente os méritos do partido e do candidato que apoiam, isto quer dizer que já não poderá haver ninguém a analisar de forma ponderada e sem envolvimento direto, o funcionamento do “autoritarismo competitivo” moçambicano, estando todos envolvidos na luta política. Mais uma vez, uma derrota para a democracia moçambicana…
Por enquanto só é possível celebrar o fim da versão democrática moçambicana sob o prisma do “autoritarismo competitivo”, uma vez que fica difícil fazer previsões de como este modelo irá evoluir ou se irá ser substituído por outro. O que é certo é que o país irá ficar com a componente do “autoritarismo”, e que a derrota do “competitivo” (que garantia um mínimo de debate democrático) abre cenários imprevisíveis, provavelmente fechando o período da “Segunda República” e abrindo um terceiro, cujas caraterísticas serão determinadas pelas relações de poder entre os atores políticos locais e o posicionamento da comunidade internacional.
Luca Bussoti é Professor Associado Visitante Universidade Federal de Moçambique e Investigador CEI-IUL.
As opiniões expressas neste texto representam unicamente o ponto de vista do autor e não vinculam o Centro de Estudos Internacionais, a sua direcção ou qualquer outro investigador.
Filipe Nyusi / Foto de GovernmentZA / CC BY-ND 2.0
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