O impacto do Relatório Kroll na sociedade moçambicana
Da segurança marítima à cobertura de dívidas
Faz pouco mais de um ano que os moçambicanos (juntamente com os parceiros internacionais) descobriram que o Estado tinha dado garantias financeiras para cobrir as actividades (ler: dívidas) de três empresas destinadas a garantir a segurança marítima de Moçambique – Ematum, ProIndicus e MAM. A Kroll – empresa de auditoria financeira paga pela embaixada da Suécia, que trabalhou em paralelo com a Procuradoria-Geral da República – foi escolhida para levar a cabo a investigação sobre os mecanismos e os indivíduos que determinaram o acumular-se de uma dívida que ultrapassa os 2 mil milhões de dólares, e que o Parlamento moçambicano tem, em larga medida, votado a posterior como sendo dívida pública, com recurso junto do Conselho Constitucional por parte de vários sujeitos, entre os quais o Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
O relatório, assim como anteriormente anunciado, não traz nomes (salvo raras excepções), mas destaca de uma forma clara os mecanismos que deram origem a esta avultada dívida pública, contraída entre 2013 e 2014, de que nenhuma instituição, nem interna, nem externa, tinha conhecimento. Existem ainda várias lacunas, como a própria Kroll admitiu, no que diz respeito ao destino final de uma parte desses valores, nomeadamente 500 milhões de dólares, supostamente usados para a compra de armamentos, mas de que foi impossível ter confirmação.
Apesar dessas limitações, o relatório entregue à Procuradoria-Geral da República evidencia mecanismos perversos que deixam entender quão grande tenha sido a influência de um punhado de homens do SISE (os serviços de segurança moçambicanos) ao longo da presidência de Armando Guebuza (2004-2014), que contribuíram largamente para fazer com que Moçambique fosse o único estado africano, juntamente com a República Democrática do Congo, a cair num default financeiro em 2016.
As três empresas envolvidas eram controladas, com percentagens diferenciadas, por uma sociedade do SISE, a GIPS, e dirigidas todas pelo antigo director da intelligence moçambicana, António do Rosário. As empresas não produziram nenhum útil financeiro, uma vez que nenhuma delas levou a cabo actividades desde a sua fundação.
O impacto do relatório Kroll
Em Moçambique, a publicação do relatório da Kroll despertou um debate muito acesso e até violento, como era de imaginar. Quer em termos políticos, com as oposições (mais o MDM do que a Renamo, preocupada com o fecho das negociações de paz com o Governo), quer ao nível da comunicação social, a palavra de ordem é de culpabilizar os responsáveis deste desastre financeiro. O CIP (Centro de Integridade Pública), com uma postura definível de justicialista, tem publicado em alguns semanários privados as fotos de personagens de destaque do cenário político frelimista com uma barra vermelha em cima das respectivas caras e, por baixo, a palavra “Cúmplice!”, repercorrendo o estilo americano do “Wanted!” usado para os criminosos e bandidos no Far-West.
Este bombardeamento mediático pode parecer restrito à elite política local ou, no máximo, interessar os parceiros internacionais que deverão decidir se retomarão o apoio ao orçamento de estado moçambicano, incapaz de fechar as contas através de recursos internos.
Na verdade, aquilo que parece emergir desta campanha, acompanhada por outros episódios francamente inconvenientes nesta fase (como a aquisição, por parte do Parlamento, de 17 Mercedes luxo para uso dos deputados, que custaram cerca de 4 milhões de dólares), é a grande distância entre governados e governantes, entre o país real e o país “dourado” da política moçambicana. A opinião pública, geralmente silenciosa e passiva, começa a dar sinais de grande intolerância para com estes comportamentos da elite dirigente local, tanto mais que a Procuradoria-Geral da República não tem levado a cabo nenhuma acção concreta como consequência da entrega do relatório por parte da Kroll, dando a impressão de que esta estivesse à espera que uma decisão política ao mais alto nível lhe dissesse o que fazer.
Agravamento de tensões sociais
Poderá ser um caso, mas, em poucos dias, dois episódios deram a sensação de que os níveis de suportação dos moçambicanos estão praticamente esgotados: na Macia, uma vila na província de Gaza atravessada pela principal artéria rodoviária do país, a EN1, vendedores ambulantes protagonizaram motins no meio da rua, queimando pneus e manifestando-se contra a local câmara municipal, devido ao facto de esta ter mandado remover as suas modestas infraestruturas comerciais das bermas da EN1, alegando motivos de segurança. Dois dias depois, o corpo técnico da UEM, a maior universidade do país, encenou uma manifestação no campus principal desta instituição, reclamando o bónus anual que a UEM devia pagar até fim de 2016, mas que foi constantemente adiado, devido à falta de fundos para o efeito. Nas conversas de rua não existe um cidadão que não tenha conhecimento daquilo que está a acontecer ao nível político, com grande decepção para o comportamento de uma elite cada vez mais distanciada das sensibilidades reais do país.
Estes motivos todos fazem com que a situação social, antes das condições políticas ou financeiras de Moçambique, seja neste momento preocupante, tanto mais que a própria elite política não tem plena consciência disso. Se fica difícil, se não impossível, fazer previsões, não é tão ousado dizer que vige a maior incerteza e que qualquer coisa poderá acontecer, se a “batata quente” do escândalo financeiro não for gerida com responsabilidade e com imparcialidade.
Photo by Raul Soler / CC BY-NC 2.0
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